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Janeiro Literário | Um Dedo De Prosa, por Rafael Machado

O passado presente. O erro emocional em busca de redenção. Uma história que teima em reviver, restando a única resposta possível: imaginá-la diferente. Mas pode o coração pagar o preço por isso?

Chegamos a mais uma edição da coluna Um Dedo de Prosa, que integra nosso Janeiro Literário. Hoje, um conto sobre slêncios e fugas, que tenho o prazer de apresentar a você, querido leitor.

 

Semper Fi

Rafael Machado

Escrever é controlar a vida, ele disse. Ela não sabia se conversavam a sério ou não, mas se pôs a refletir sobre isso. Antes de tudo, é possível controlá-la? Ora, a vida imaginada, sim, ele retrucou. Principalmente a revisão utópica de fatos perdidos no tempo. A chance de voltar atrás e fazer diferente, entende? Consertar erros, dizer o que não foi dito, reter nos braços o seu abraço enquanto for possível.

O meu abraço?, ela questiona, surpresa. Ele pensa em confirmar, sim, estive o tempo todo falando de você, falando de nós, mas freia o entusiasmo, gosta do rumo da conversa e não quer estragar tudo novamente. Mas repetir o engano do silêncio não levaria justamente à mesma tristeza? Provavelmente sim. No entanto, não saberia fazer de outra forma. É o seu jeito, e não encontrou ainda uma maneira de quebrar isso. E então?, ela reitera, na expectativa da resposta certa, quem sabe, ou simplesmente curiosa pelo o que ele dirá em seguida.

A verdade é que nunca saberá. Ele desconversa em seguida, reclama do calor, diz que ela precisa ler um livro do qual nunca ouviu falar para entender o seu raciocínio. Controlar a vida seria muito chato, ela arremata: quem sabe as surpresas que ela pode trazer? E, mesmo diante dos problemas, basta abraçar o desafio de resolvê-los da melhor forma. Ela nunca irá compreendê-lo, ele conclui, porque carrega sempre esse entusiasmo galopante no peito, um jeito de encarar tudo sem medo, com a segurança de quem não perde as rédeas de seu destino há muito tempo.

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Será isso mesmo?, ele divaga, quando as coisas se acertam, a pessoa passa a ter outra postura? Está tarde e ela precisa dormir, interrompe a conversa com dois beijos e diz que ele sempre a faz sorrir. Pois eu queria os seus sorrisos agora, ele pensa; ou melhor, ele sente, a necessidade urgente de ter não somente os sorrisos, mas os beijos, e os olhos sobre seu rosto, as mãos em torno do pescoço, os corpos em ritmo de fuga.

A fuga transcendental, trilhada entre mordidas, suor e orgasmos seguidos, mas nada apressado, afinal; se moveriam guiados pelo instinto que souberam manter em sintonia logo na primeira (e última) vez. É o final da lembrança construída no desejo que o abate, o esmorece e tira o brilho de seu rosto enquanto ele se despede e deseja boa noite com vários corações vibrantes. Quando olha o relógio se dá conta que é noite alta, quase meia noite, e seu sono se esvaiu completamente.

Levanta, caminha um pouco pela casa, pensa em preparar um café, mas por fim se decide por um copo de água e o retorno ao quarto que permanece às escuras. É quando acende a luz que percebe a cama coberta dos livros revirados mais cedo, ao buscar uma referência justamente do escritor que indicara para ela: “A ficção se torna mais forte e cria elos com o leitor na medida em que se aproxima da realidade refeita de um jeito que provoque a percepção sobre o absurdo das coisas, sobre as pequenas incoerências do cotidiano e as grandes conquistas da humanidade que passam despercebidas.”

Ficara o dia inteiro com essas palavras na cabeça, refletindo sobre como colocá-las em prática. Foi desse trecho que arredou seu epíteto, convergindo escrita e controle. Seria possível?, ela quis ponderar, sem desconfiar do passado posto em jogo, das escolhas que não foram escolhas, uma vez expressas e por conseguinte já deixadas para trás. Qual o ânimo para colocar essa pilha de livros em ordem, ele se questionava, enquanto passava a vista sobre os títulos, todos já lidos, alguns há mais de dez anos.

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As edições, umas poucas amareladas pelo tempo e pelo uso, estavam bem conservadas, com poucos riscos e anotações, o fazendo rememorar a lição aprendida. O que havia de vida ali que o tinha levado a perceber o mundo de um modo diferente, a enxergar a vida maior, enfim compreendida? E depois de alguns minutos se deu conta que havia muito, sim. Embora a dificuldade de comunicar o seu interior conturbado fosse grande, ele devia valiosas mensagens apreendidas àquelas páginas, muitas, devoradas em diversos momentos de sua existência, diferentes idades, colaborando para sua formação.

A consciência feita de palavras, alteridade, perda, memória, amor. Tudo impresso em versos e reversos que o levaram até aquele momento, absorto no cenário de sua cama tomada de livros, os pensamentos em desordem, com ela pairando sobre tudo, feito a borboleta tatuada onde sua língua passeara desenvolta.

Não, não caia nessa armadilha, ele pondera consigo. Há o tempo certo para tudo, e se a vida quiser, um dia chegará a vez. E, num estalo, conclui: não, a vida não se controla mesmo! Precisa dizer isso para ela, antes que seja tarde… Ao menos na ficção: onde o final que aqui se encontra, se encerra em aberto.

 

Parnaibano, leitor inveterado, mad fer it, bonelliano, cinéfilo amador. Contato: rafaelmachado@quintacapa.com.br