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Resenha | Elizabeth Costello, de J. M. Coetzee

Conheci a obra de Coetzee por acaso. Certa vez no supermercado avistei um título seu, Juventude, por 10 reais e decidi me arriscar. Já ouvira seu nome e sabia de seu Nobel de Literatura. Só depois descobriria que o volume na verdade integrava uma espécie de trilogia em que o autor abordava diversos períodos de sua vida (os outros volumes são Infância e Verão), em que de maneira econômica relata lembranças que se sucedem, numa narrativa sem grandes arroubos em que o reconhecimento indiferente ou frio dos eventos me remeteu à perplexidade que o Estrangeiro de Camus instiga.

Esse primeiro contato com o autor e seu estilo me levaram a procurar os demais livros de cunho autobiográfico já citados antes de me aventurar pela sua obra em ficção propriamente. O primeiro que li, À Espera dos Bárbaros, é um conto aterrorizante de cunho político construído num cenário da alegoria de todos os limites do indivíduo. Outro que encarei tem como título Foe, no qual o autor recria a história de Robinson Crusoé por meio de uma mulher que supostamente teria dividido com ele seu tempo na ilha e procura registrar sua experiência procurando o autor do livro “real”, Daniel Foe, num jogo de espelhos que recorre à metalinguagem de maneira sensacional.

J. M. Coetzee, escritor nascido na África do Sul e que atualmente mora na Austrália. Ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 2003.

Após estas e outras leituras, parti para Elizabeth Costello (Companhia das Letras, 256 páginas, preço sugerido de R$ 49,90), o livro que apresentarei agora. De antemão, registro que não o considero a melhor porta de entrada ideal para a obra do autor. Costello, personagem que costuma ser apontada como alter-ego do autor e portadora de muitos posicionamentos seus já havia aparecido no livro A Vida dos Animais. E aqui retorna, na primeira obra publicada por Coetzee após ter ganho o Nobel, num livro que se estrutura como uma sucessão de palestras proferidas pela personagem em diversos contextos e momentos de sua vida. A apresentação, defesa ou discussão das ideias é o ponto central aqui; os elementos pessoais que integram o fundo de cena correm ao largo, sendo explorados em maior ou menor intensidade de acordo com o capítulo.

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E falo em “palestras” mais para me apropriar do subtítulo dado à edição brasileira pois algumas vezes não se trata da apresentação de uma, exatamente. O estilo narrativo não é uniforme e muda ao longo do livro, que chegou a ter trechos publicados previamente. O que se depreende de Elizabeth Costello, uma escritora australiana que chega aos sessenta anos consagrada, com alguns clássicos reconhecidos em sua obra (notadamente A Casa da rua Eccles) e sérios problemas mal resolvidos com seus filhos, é a figura de uma mulher aguerrida, que defende seus princípios de maneira irredutível e carrega noções muito sólidas sobre o papel da mulher do mundo e o fazer literário.

Acreditamos que houve um tempo em que podíamos dizer quem éramos. Agora, somos apenas atores recitando nossos papéis. O fundo caiu. Poderíamos considerar trágico esse evento, não fosse pelo fato de ser difícil respeitar um fundo que cai, seja ele qual for – isso agora nos parece uma ilusão, uma dessas ilusões sustentadas apenas pelo olhar concentrado de todos da sala. Removam seu olhar apenas um instante, e o espelho cai ao chão e se parte. (p. 27)

Apesar de não se abordar diretamente, percebemos a passagem do tempo à medida que a leitura avança, cada capítulo ambientado num lugar diferente e discorrendo sobre um tópico: seja uma reflexão sobre a natureza do realismo; ou o sentido da literatura para a cultura africana; a condição dos animais perante à Humanidade; ou uma análise sobre o Mal que o homem é capaz ao longo de sua História. Seja como discurso após a entrega de um prêmio, ou numa conversa com sua irmã sobre religião, Elizabeth se coloca como mecanismo de provocação, alimentando debates em busca de respostas que muitas vezes não aparecem, cabendo ao leitor sua própria ponderação sobre os assuntos abordados com base no raciocínio que a personagem desenvolve.

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Afora a conclusão algo confusa frente ao desenvolvimento anterior do texto, é um livro que merece atenção, mas somente quando o leitor já está familiarizado com o estilo de Coetzee, um autor que foge do convencional e procura sempre inquietar o leitor da melhor maneira – o levando a intuir o não-escrito em seus trabalhos.

 

Parnaibano, leitor inveterado, mad fer it, bonelliano, cinéfilo amador. Contato: rafaelmachado@quintacapa.com.br