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Sobre a Tetralogia Napolitana, de Elena Ferrante

Eu ouvi falar, pela primeira vez, na Elena Ferrante por conta de uma polêmica envolvendo sua identidade. Eu nem sabia sobre a autora, e já descobriria que o nome era inventado, usado pra se “apagar”, e que tinha gente indo atrás de descobrir quem era o ser por trás do pseudônimo.

Capa dos livros, pela Editora Biblioteca Azul

Aqui na Quinta Capa já falamos um pouco sobre essa polêmica, numa resenha sobre um texto de Domenico Starnone, marido de Anita Raja, que é apontada como a identidade secreta de Elena.

Discussões à parte sobre quem é ou não é Elena Ferrante, e o problema ético em retirar alguém à força de seu esconderijo, acabei me interessando pela obra famosa. Eu tive algum estranhamento com o nome do livro. “A amiga genial” passou a mim uma ideia de frivolidade que não me interessou muito, confesso. Contudo, as amigas metidas com literatura todas já tinham lido e falavam bem demais. Eu costumo confiar no gosto de certas pessoas.

Descobri que se tratava de uma quadrilogia. E os nomes dos outros livros não me deixavam angustiada. Quando me apareceu a oportunidade de ter os quatro livros, não restou dúvida de que eles pulariam qualquer fila.

Comecei o “A amiga genial” com medo do desconhecido e acabei encantada com as amigas Elena Greco e Rafaella Cerullo. Agora, já íntima, chamarei de Lenu e Lila. O livro é narrado por Lenu, que decide contar a história da amiga como uma forma de contrariá-la e fazer um registro dessa pessoa extraordinária. Ela começa, então, pelo começo: a infância em que se tornaram amigas.

Lenu vai contando histórias de forma não linear e, aos poucos, a gente vai percebendo que contar a história de Lila é contar a própria história da narradora. As duas possuem uma amizade estranha, formada por laços que misturam bons e maus sentimentos recíprocos. É essa relação que as impulsiona a viver, como uma prestação de contas a fazer. Principalmente Lenu, uma garota que se preocupa em agradar às opiniões e tem em Lila alguém dos mais elevados padrões, razão pela qual tenta se provar à altura. Lila é descrita por Lenu como uma criatura selvagem, dotada de uma inteligência absurda e uma capacidade de fazer o mal. Mais crescida, também de uma beleza inigualável. A garota se sente atraída pelo magnetismo da outra e elas acabam se aproximando.

Inevitavelmente eu irei trazer fatos sobre os livros, embora não entre em detalhes. Então, aviso: CONTÉM SPOILER. Leia por sua conta e risco.

Capa de “A amiga genial”

A AMIGA GENIAL

No primeiro livro da série acompanhamos a infância difícil num bairro de Nápoles, na Itália. As meninas, pobres, acabam se encantando com a possibilidade de se tornarem escritoras ricas depois de ler um livro chamado “Mulherzinhas”. Como em várias ocasiões, o sonho parte, na verdade, de Lila e Lenu se encanta com as potencialidades que a amiga visualiza.
Em meio às dificuldades que ambas têm de seguir nos estudos e as inquietações afetivas, com a chegada da adolescência, somos apresentados aos amigos, às famílias, à violência do lugar, aos conflitos locais e também ao contexto político de uma Itália pós 2° Guerra Mundial. O livro aborda também questões importante sobre costumes, principalmente em relação às exigências às mulheres, como a virgindade, casamento e violência sexual.

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Embora extremamente envolvida, a narrativa do livro me fez sentir grande incômodo. É uma obra muito densa e traz relatos difíceis de lidar. Precisei fazer uma pausa antes de continuar a leitura da quadrilogia, mas não consegui tirar as duas amigas da cabeça.

HISTÓRIA DO NOVO SOBRENOME

O segundo livro, “História do novo sobrenome”, traz relatos sobre a vidas das duas a partir dos 16 anos, quando Lila se torna a Sra. Carracci, ao casar-se com Stéfano, um jovem rico que proporciona ascensão social a ela e a auxilia a livrar-se de Marcello Solara, um pretendente da Camorra (uma organização criminosa italiana) e a impulsionar os negócios da família Cerullo, quando Lila, obrigada a trabalhar, abandonando os estudos, decide desenvolver sapatos e dar um salto na sapataria do pai. Os relatos sobre a aproximação dos dois, Lila e Stéfano, ocorre ainda no primeiro livro, que termina com a cerimônia de casamento nos trazendo expectativas felizes, apesar do desânimo de Lenu, que almeja se equiparar a amiga em tudo. Estudava para competir com ela, arruma um namorado pra não ficar pra trás.

Capa de “História do novo sobrenome”

Este segundo livro nos mostra que a amizade de Lenu e Lila tem muitos pontos de aproximação e afastamento, tanto em relação aos caminhos que tomam quanto à intimidade que as duas desfrutam. É também um balde de água fria nos mostrando que a vida é cruel. Lenu, continua estudando, mesmo com as dificuldades financeiras; Lila, bem de vida, não pode mais estudar e finge desinteresse, enquanto sofre com violência doméstica e pressão pela maternidade. É brutal observar que a menina inteligente, cruel e capaz de tudo acaba se tornando uma jovem que tem sua vida redimensionada em função do casamento.

Nada escapa aos relatos de Lenu: as ilusões amorosas, as traições, as ambições. Em certo momento, a garota narradora se vê envolvida numa estranha relação com o seu amor platônico, Nino Sarratore, e a amiga que, contrariando toda a expectativa mais uma vez, se vê entregue a um relacionamento amoroso com uma figura problemática.

Enquanto isso, após abdicar dos próprios interesses pela estima em relação a Lila, Lenu luta pra ascender socialmente por meio dos estudos, indo fazer um curso superior em outra cidade e se envolvendo em um mundo diferente do seu. Nesse ponto, os relatos de Lenu sobre Lila são de “ouvir dizer”, pois se distanciam enormemente. E é Lenu quem se torna escritora, de fato, sem Lila, ainda que a outra esteja sempre presente em seu inconsciente.

Capa de “História de quem foge e de quem fica”

HISTÓRIA DE QUEM FOGE E DE QUEM FICA

O terceiro livro, “História de quem foge e de quem fica”, traz um foco maior em Lenu, que está distante de Lila. Enquanto Lenu se casa e Lila vive um período difícil, pós separação de Nino, com um filho, nos vemos envolvidos com discussões politicas que tensionam a Itália na década de 60. As duas amigas se vêem inseridas nesses conflitos por meio das outras amizades do bairro e da própria Lila, que se vê em situação de exploração na fábrica onde trabalha.

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Enquanto Lila tenta reconstruir a própria vida, Lenu tem seu momento de “chutar o pau da barraca” influenciada pelo ambiente mais liberal em que circula, enquanto luta pra se firmar como escritora e com os dilemas internos por conta de suas aproximações com o feminismo e a situação em que se coloca ao se envolver com Nino, apesar dos alertas de Lila. Lenu exibe, também, os conflitos que têm com a maternidade, na dificuldade em criar e se dedicar às filhas, conciliando trabalho e amor, bem como com o papel feminino no trabalho doméstico e sua relação difícil com a mãe.

HISTÓRIA DA MENINA PERDIDA

O último livro, “História da menina perdida”, já me causou grande apreensão pelo nome. Neste volume, Lenu já exibe alguma força diante das pressões externas, busca equilibrar o relacionamento com o indisponível Nino, e tenta lidar com os dilemas de sua família a partir das vivências de seus irmãos: a mais nova se envolve com os criminosos Solara, arrastando os irmãos. Aqui Lenu tem consciência da dimensão que pode tomar o problema com a dependência química e se preocupa com a família, de quem esteve distante, como forma de dar conforto à mãe, de quem se aproxima por conta de seu adoecimento.

A relação de Lila e Lenu volta a ser de grande proximidade, com o estreitamento de laços a partir do momento em que ambas engravidam novamente e se tornam vizinhas. Os conflitos com os filhos de ambas e as relações intercambiáveis se torna o centro da narrativa, tendo como plano de fundo o sucesso profissional das duas amigas – Lenu uma escritora renomada e Lila uma empresária – que acabam se distinguindo no bairro. Todo o equilíbrio acaba sofrendo um grande abalo com a perda da menina do título, que acaba reverberando nas duas amigas, em seus filhos, no bairro. A relação das duas se mostra, ainda, de dependência, afeto e manipulação.

Capa de “História da menina perdida”

O fim da narrativa me faz sentir um vazio enorme, de modo que me impulsiona a escrever sobre a obra. Um pouco como Lenu, que acaba colocando no papel o que vive.

A quadrilogia napolitana de Elena Ferrante não é apenas o relato de amizade difícil e permanente entre duas mulheres marcadas pelo lugar de onde vieram e para onde desejavam ir, mas também uma reflexão sobre a sociedade, sobre as desigualdades sociais, sobre o valor que atribuímos aos estudos como forma de distinção, sobre o papel do Estado, sobre a importância da mobilização social, sobre questões de gênero… sobre a complexidade da vida, do inesperado e o que podemos fazer com o que temos.

Quer ser alguém importante na história do mundo, mas tem preguiça. Costuma ser do contra, gosta de coisas fofinhas, nasceu pras artes e foi trabalhar com coisas chatas pra não estragar os hobbies e nem passar fome.