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Todo Dia É Dia D

Se vivo fosse, Carlos Drummond de Andrade estaria completando 116 anos hoje, dia 31 de outubro. Nascido em Itabira, Minas Gerais, em 1902, viria a ser um dos maiores nomes de nossa literatura e expressão máxima da poética brasileira produzida no século XX.

Como nos recorda Mariah Aquino, Carlos formou-se em farmácia na Escola de Odontologia e Farmácia de Belo Horizonte, mas nunca exerceu a profissão. Desde cedo, mostrava aptidão e amor pelas palavras. Foi expulso do Colégio Anchieta, internato jesuíta no Rio de Janeiro, por “insubordinação mental” depois de sucessivas discussões com o professor de português. Desde aquela época, com apenas 17 anos, discordava em vários pontos que tangiam a norma culta e a forma correta de se escrever.

Inspirado no Bloomsday, data anual em que é celebrada a obra de James Joyce, o Instituto Moreira Sales passou a organizar o Dia D – Dia Drummond, desde 2011, com o objetivo de fazer com que a data do nascimento do grande poeta passasse a integrar o calendário cultural do país. A fim de promover e difundir a obra do escritor, o IMS convida parceiros e amigos para celebrar a data.

O site oficial do evento, www.diadrummond.com.br, divulga anualmente a programação, que este ano acontece em diversas capitais e na cidade natal do autor, onde acontece o 2º Festival Drummond e 17ª Semana Drummondiana.

Para celebrar a data deixamos aqui três poesias que representam a beleza, leveza e fineza de sua obra. Sempre é tempo de celebrar Drummond.

AMAR

Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer, amar e malamar,

amar, desamar, amar?

sempre, e até de olhos vidrados, amar?

 

Que pode, pergunto, o ser amoroso,

sozinho, em rotação universal,

senão rodar também, e amar?

amar o que o mar traz à praia,

o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,

é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

 

Amar solenemente as palmas do deserto,

o que é entrega ou adoração expectante,

e amar o inóspito, o cru,

um vaso sem flor, um chão de ferro,

e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e

uma ave de rapina.

 

Este o nosso destino: amor sem conta,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

doação ilimitada a uma completa ingratidão,

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor.

 

Amar a nossa falta mesma de amor,

e na secura nossa amar a água implícita,

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e o beijo tácito, e a sede infinita.

 

NÃO SE MATE

Carlos, sossegue, o amor

é isso que você está vendo:

hoje beija, amanhã não beija,

depois de amanhã é domingo

e segunda-feira ninguém sabe

o que será.

 

Inútil você resistir

ou mesmo suicidar-se.

Não se mate, oh não se mate,

Reserve-se todo para

as bodas que ninguém sabe

quando virão,

se é que virão.

 

O amor, Carlos, você telúrico,

a noite passou em você,

e os recalques se sublimando,

lá dentro um barulho inefável,

rezas,

vitrolas,

santos que se persignam,

anúncios do melhor sabão,

barulho que ninguém sabe

de quê, praquê.

 

Entretanto você caminha

melancólico e vertical.

Você é a palmeira, você é o grito

que ninguém ouviu no teatro

e as luzes todas se apagam.

O amor no escuro, não, no claro,

é sempre triste, meu filho, Carlos,

mas não diga nada a ninguém,

ninguém sabe nem saberá.

Não se mate.

 

A MÁQUINA DO MUNDO

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco

 

se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas

 

lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,

 

a máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.

 

Abriu-se majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro

nem um clarão maior que o tolerável

 

pelas pupilas gastas na inspeção

contínua e dolorosa do deserto,

e pela mente exausta de mentar

 

toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada

no rosto do mistério, nos abismos.

 

Abriu-se em calma pura, e convidando

quantos sentidos e intuições restavam

a quem de os ter usado os já perdera

 

e nem desejaria recobrá-los,

se em vão e para sempre repetimos

os mesmos sem roteiro tristes périplos,

 

convidando-os a todos, em coorte,

a se aplicarem sobre o pasto inédito

da natureza mítica das coisas,

 

assim me disse, embora voz alguma

ou sopro ou eco o simples percussão

atestasse que alguém, sobre a montanha,

 

a outro alguém, noturno e miserável,

em colóquio se estava dirigindo:

“O que procuraste em ti ou fora de

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teu ser restrito e nunca se mostrou,

mesmo afetando dar-se ou se rendendo,

e a cada instante mais se retraindo,

 

olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,

 

essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

que nem concebes mais, pois tão esquivo

 

se revelou ante a pesquisa ardente

em que te consumiste… vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo.”

 

As mais soberbas pontes e edifícios,

o que nas oficinas se elabora,

o que pensado foi e logo atinge

 

distância superior ao pensamento,

os recursos da terra dominados,

e as paixões e os impulsos e os tormentos

 

e tudo que define o ser terrestre

ou se prolonga até nos animais

e chega às plantas para se embeber

 

no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar

na estranha ordem geométrica de tudo,

 

e o absurdo original e seus enigmas,

suas verdades altas mais que tantos

monumentos erguidos à verdade;

 

e a memória dos deuses, e o solene

sentimento de morte, que floresce

no caule da existência mais gloriosa,

 

tudo se apresentou nesse relance

e me chamou para seu reino augusto,

afinal submetido à vista humana.

 

Mas, como eu relutasse em responder

a tal apelo assim maravilhoso,

pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

 

a esperança mais mínima — esse anelo

de ver desvanecida a treva espessa

que entre os raios do sol inda se filtra;

 

como defuntas crenças convocadas

presto e fremente não se produzissem

a de novo tingir a neutra face

 

que vou pelos caminhos demonstrando,

e como se outro ser, não mais aquele

habitante de mim há tantos anos,

 

passasse a comandar minha vontade

que, já de si volúvel, se cerrava

semelhante a essas flores reticentes

 

em si mesmas abertas e fechadas;

como se um dom tardio já não fora

apetecível, antes despiciendo,

 

baixei os olhos, incurioso, lasso,

desdenhando colher a coisa oferta

que se abria gratuita a meu engenho.

 

A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,

 

se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mão pensas.

 

Bônus: Carlos Drummond de Andrade em pessoa declamando um de seus poemas.

Parnaibano, leitor inveterado, mad fer it, bonelliano, cinéfilo amador. Contato: rafaelmachado@quintacapa.com.br