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Cia Das Letras Resgata Úrsula, de Maria Firmina dos Reis

A editora Companhia das Letras promove importantíssimo resgate histórico e literário com o lançamento de Úrsula, via seu selo Penguin Companhia. Obra inaugural da literatura afro-brasileira, Úrsula é considerado o primeiro romance escrito por uma mulher no Brasil. Maria Firmina dos Reis, mulher negra nascida no Maranhão, constrói uma narrativa ultrarromântica para falar das mazelas sociais decorrentes da escravidão.

Segue a sinopse divulgada: Tancredo e Úrsula são jovens, puros e altruístas. Com a vida marcada por perdas e decepções familiares, eles se apaixonam tão logo o destino os aproxima, mas se deparam com um empecilho para concretizar seu amor. Combinando esse enredo ultrarromântico com uma abordagem crítica à escravidão, Maria Firmina dos Reis compõe Úrsula, considerado o primeiro romance brasileiro escrito por uma mulher, em 1859.

Por dar voz e agência a personagens escravizados, é vista como a obra inaugural da literatura afro-brasileira. Retrata homens autoritários e cruéis, mostrando atos inimagináveis de mando patriarcal e senhorial em um sistema sem espaço para a autorregulação.Com rica introdução e contextualização histórica, esta edição de Úrsula celebra uma das autoras mais importantes da literatura nacional e conta com estabelecimento de texto e introdução de Maria Helena Pereira Toledo Machado e cronologia de Flávio Gomes.

O livro conta com 224 páginas e preço sugerido de R$ 34,90, com lançamento previsto para o início de novembro. A revista CULT publicou ano passado dossiê completo sobre a autora, em texto assinado por Helô D’Angelo que nos passa a importância da autora e de seu pioneirismo. Matéria que replico abaixo, com os devidos créditos. Vale muito a leitura para conhecermos melhor esse nome esquecido de nossa literatura. Na sequência, uma matéria muito bacana do programa Agenda, transmitido pela Rede Minas, sobre Maria Firmina e sua obra:

São Luís, 11 de agosto de 1860. Logo nas primeiras páginas do jornal A Moderação, anunciava-se o lançamento do romance Úrsula, “original brasileiro”. O anúncio poderia passar despercebido, mas algo chamava atenção em suas últimas linhas: a autoria feminina da “exma. Sra. D. Maria Firmina dos Reis, professora pública em Guimarães”. Foi assim, por meio de uma simples nota, que a cidade de São Luís conheceu Maria Firmina dos Reis – considerada a primeira escritora brasileira, pioneira na crítica antiescravista da nossa literatura.

Negra, filha de mãe branca e pai negro, registrada sob o nome de um pai ilegítimo e nascida na Ilha de São Luis, no Maranhão, Maria Firmina dos Reis (1822 – 1917) fez de seu primeiro romance, Úrsula (1859), algo até então impensável: um instrumento de crítica à escravidão por meio da humanização de personagens escravizados.

“Em sua literatura, os escravos são nobres e generosos. Estão em pé de igualdade com os brancos e, quando a autora dá voz a eles, deixa que eles mesmos contem suas tragédias. O que já é um salto imenso em relação a outros textos abolicionistas”, conta a professora Régia Agostinho da Silva, professora da Universidade Federal do Maranhão e autora do artigo “A mente, essa ninguém pode escravizar: Maria Firmina dos Reis e a escrita feita por mulheres no Maranhão”.

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Além de ter se lançado em um gênero literário sem precedentes no Brasil – e dado as diretrizes para os romances abolicionistas que apareceriam apenas décadas depois -, Firmina foi a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público no Maranhão para o cargo de professora de primário. Com o próprio salário, sustentava-se sozinha em uma época em que isso era incomum e até mal visto para mulheres. Oito anos antes da Lei Áurea, criou a primeira escola mista para meninos e meninas – que não chegou a durar três anos, tamanho escândalo que causou na cidade de Maçaricó, em Guimarães, onde foi aberta.

“A autora era bem conhecida para os maranhenses do seu tempo. Professora, gozava de certa circularidade nos jornais. Apesar de mulher, não era um pária social no período no qual viveu, mas claro que enfrentou o silenciamento da sua obra”, conta Silva.

Esquecida por décadas, sua obra só foi recuperada em 1962 pelo historiador paraibano Horácio de Almeida em um sebo no Rio de Janeiro – e, hoje, até seu rosto verdadeiro é desconhecido: nos registros oficiais da Câmara dos Vereadores de Guimarães está uma gravura com a face de uma mulher branca, retrato inspirado na imagem de uma escritora gaúcha, com quem Firmina foi confundida na época. O busto da escritora no Museu Histórico do Maranhão também a retrata “embranquecida”, de nariz fino e cabelos lisos.

O contato de Firmina com a literatura começou cedo, em 1830, quando mudou-se para a casa de uma tia um pouco mais rica, na vila de São José de Guimarães. Aos poucos, a jovem travou contato com referências culturais e com outros de seus parentes ligados ao meio cultural, como Sotero dos Reis, um popular gramático da época. Foi daí, e do autodidatismo, que veio o gosto pelas letras.

Quando se tornou professora, em 1847, Firmina já tinha uma postura antiescravista bem desenvolvida e articulada. Ao ser aprovada no concurso para professora, recusou-se a andar em um palanque desfilando pela cidade de São Luís nas costas de escravos. “Na ocasião, Firmina teria afirmado que escravos não eram bichos para levar pessoas montadas neles”, afirma Silva.

Mas era praticamente impossível para uma mulher expor sua opinião contra a escravidão – ainda mais uma mulher negra. Foi a estabilidade e o respeito alcançados como professora que abriram espaço para Firmina lançar seu primeiro livro, o romance Úrsula, no qual enfim publicaria seu ponto de vista sobre o tema.

Diferente dos escritos de mulheres da época, o romance não era “de perfumaria”, nem algo sem profundidade. Ao contrário: foi o primeiro livro brasileiro a se posicionar contra a escravidão e a partir do ponto de vista de escravos – antes do famoso poema Navio negreiro, de Castro Alves (1869), e de A Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães.

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Em Úrsula, Firmina faz questão de mostrar a crueldade de Fernando, senhor de escravos e vilão da história. Mas a pérola do livro é a personagem Suzana, uma mulher escravizada que, frequentemente, recorda-se de sua época de liberdade. “É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos”, escreve, em determinado momento. Para Silva, a forma é bastante característica de Firmina: “O escravo firminiano é, antes de tudo, aquele que fala da África, que só reconhece a verdadeira liberdade, no tempo em que vivia naquela África saudosa e nostálgica”.

Anos depois, quando já se firmara como escritora e professora – e quando o movimento abolicionista já estava mais difundido no Brasil -, a autora publicaria um conto ainda mais crítico, A escrava (1887), que conta a história de uma mulher de classe alta sem nome que tenta, sem sucesso, salvar uma mulher escravizada. A crítica à escravidão chega a ser literal: em uma passagem, a protagonista diz que o regime “é e sempre será um grande mal”.

“Os tempos eram outros. Em 1887, a escravidão era questionada no país inteiro. Em 1859, Maria Firmina dos Reis teve que usar um tom mais brando em seu romance, pois queria conquistar os leitores para a causa antiescravista. Leitores que, na sua imensa maioria, eram da elite e provavelmente tinham escravos”, afirma a pesquisadora.

Com o passar dos anos, tendo apenas um livro publicado, o nome de Firmina desapareceu. Para Silva, a insistência da autora em denunciar e criticar a escravidão pode ter sido a causa do obscurantismo. “O assunto de que tratava era insalubre demais, uma fala antiescravista em uma das províncias mais escravistas do Brasil. Não a levaram a sério localmente, não queriam ouvi-la falando. E ela não teve como levar seu texto para outros lugares.”

Recentemente, a editora PUC Minas lançou uma nova edição de Úrsula, o que ajuda a difundir sua obra. No entanto, pouco se sabe sobre outros possíveis textos de Firmina, sobre os detalhes de sua vida ou sobre como uma mulher negra de origem pobre alcançou tanto sucesso em pleno regime escravocrata. A própria biografia de Firmina, escrita por José Nascimento Morais Filho em 1975, tem como título Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

“Autores como Lima Barreto e Machado de Assis [hoje reconhecidos como não-brancos] já têm uma fortuna crítica imensa, e por isso também sabemos muito mais sobre eles”, afirma Silva. “A de Maria Firmina dos Reis ainda está sendo construída. E acho que, em algum tempo, saberemos bem mais sobre a autora.”

Parnaibano, leitor inveterado, mad fer it, bonelliano, cinéfilo amador. Contato: rafaelmachado@quintacapa.com.br