Ah, as Tartarugas Ninja. Ícones da cultura pop que venderam lancheiras, bonecos e uma nostalgia açucarada de “Cowabunga!” e pizzas com sabores duvidosos. Se essa é a sua principal referência, a “Coleção Clássica Vol. 1” da editora Pipoca & Nanquim vai te dar um soco no estômago com um casco de tartaruga. E isso é um elogio. Prepare-se para abandonar a Sessão da Tarde e mergulhar no esgoto fétido e fotocopiado de onde esses quelônios mutantes realmente rastejaram.
Este volume compila as sete primeiras edições originais da Mirage Studios, criadas por Kevin Eastman e Peter Laird em 1984, além da micro-série focada em Raphael. E a primeira coisa que salta aos olhos — ou melhor, que se impõe na ausência delas — são as cores. Ou a falta delas. O preto e branco sujo e granulado não é um capricho estético, é uma declaração de independência. Financiada com o dinheiro de uma restituição de imposto de renda e a grana de um tio, esta não é a obra de uma grande corporação tentando criar o próximo sucesso de marketing. É a obra de dois caras que queriam fazer quadrinhos. E ponto.
A arte é crua, por vezes desajeitada, mas pulsante de uma energia visceral. A influência de Frank Miller, especialmente de seu trabalho em “Ronin” e “Demolidor”, é tão sutil quanto um nunchaku na cara. A própria origem das Tartarugas é uma paródia direta da origem do Demolidor, com o mesmo cilindro de material radioativo que cega um jovem, aqui também transforma os quatro irmãos e seu mestre. O Clã do Pé (The Foot Clan) é uma resposta direta e debochada ao Tentáculo (The Hand) de Miller. Eastman e Laird não estavam apenas criando, estavam dialogando, e por vezes zombando, dos titãs da época.
E a história? Esqueça as personalidades bem definidas pela cor da bandana. No início, elas eram quase indistinguíveis: quatro máquinas de matar com cascos, diferenciadas apenas por suas armas. A motivação inicial não é a justiça ou a proteção dos inocentes. É vingança. Splinter não é apenas um pai adotivo sábio; é um mestre que treinou seus “filhos” com o único propósito de assassinar o Destruidor, o homem que matou seu antigo mestre. Sim, assassinar. Nesta primeira edição, as tartarugas são letais e não hesitam em usar suas lâminas para o propósito que foram criadas. A trama é sombria, violenta e surpreendentemente melancólica.
Mas e a edição da Pipoca & Nanquim? Vale o investimento?
Aqui, os elogios precisam ser mais… ponderados. A editora é conhecida por seu acabamento gráfico primoroso, e este volume não é uma exceção desastrosa, mas levanta questões. A capa dura com arte clássica é um deleite para qualquer colecionador. A compilação do material em um único volume é, sem dúvida, a melhor forma de ter acesso a essas histórias no Brasil.
Contudo, a escolha do papel, um couchê de alta gramatura, embora nobre, pode ser questionada. Será que essa lisura e brancura toda são o melhor veículo para uma arte que nasceu na rusticidade do papel de imprensa barato, do “faça você mesmo”? Parte da alma de uma obra indie como essa reside em sua estética de guerrilha, e um acabamento luxuoso pode, ironicamente, higienizar a experiência, tornando-a mais palatável, mas menos autêntica. É como servir um podrão de rua em louça de porcelana. Nutre, mas algo se perde na tradução.
A tradução se mostra competente, mantendo o tom direto e sem firulas do original. Os extras, como introduções e notas dos criadores, são sempre bem-vindos e contextualizam a obra para o leitor que pode ter sido fisgado pelo carisma dos desenhos animados e não pela importância histórica dos quadrinhos.
Veredito Cético
“Tartarugas Ninja: Coleção Clássica Vol. 1” é uma peça essencial. Não apenas para entender a origem de uma franquia multibilionária, mas para testemunhar um relâmpago engarrafado do movimento independente dos quadrinhos dos anos 80. É um lembrete corajoso de que a arte pode nascer da paixão, da paródia e de um orçamento apertado.
A edição da Pipoca & Nanquim é um item de luxo que cumpre o papel de resgatar e disponibilizar esse material. Mas não se engane. Você não está comprando um produto infantil. Está adquirindo um documento histórico, um tanto sujo, sobre quatro irmãos vingativos, treinados por um rato para cometer um assassinato.
Se você busca entender por que as Tartarugas Ninja são mais do que um meme nostálgico, a compra é obrigatória. Mas leia com a consciência de que a beleza aqui não está no refinamento, mas na força bruta de uma ideia tão absurda que, contra todas as probabilidades, se tornou genial. E talvez, só talvez, o papel de jornal fizesse mais justiça a essa origem humilde. Mas aí, você provavelmente não pagaria o preço de capa, não é mesmo? A ironia, assim como a pizza, tem muitos sabores.
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