A figura de Virgulino Ferreira da Silva, o “Lampião”, ocupa um espaço singular e paradoxal no imaginário brasileiro. Para alguns, ele é o herói popular, o justiceiro do sertão, um símbolo de resistência contra a opressão. Para outros, é a personificação da crueldade, um criminoso sanguinário que liderou um bando de assassinos e ladrões. Esta profunda ambiguidade não é um mero acaso do folclore; é o reflexo de uma história complexa e de um legado que continua a ser um campo de batalha cultural. O objetivo deste post é dissecar essa dualidade, examinando o homem histórico, o mito cultural e o seu duradouro impacto. Uma investigação correta sobre Lampião não busca um veredito simplista de “herói” ou “vilão”, pois tal veredito seria não apenas impossível, mas historicamente desonesto. A verdadeira análise reside na compreensão das condições que o criaram e das razões pelas quais a sua memória permanece tão viva e contestada.
O Sertão em Chamas: O Caldo de Cultura do Cangaço
O fenômeno do cangaço não foi uma aberração histórica, mas uma consequência lógica, ainda que brutal, das condições sociais, políticas e ambientais que definiram o Nordeste brasileiro durante a República Velha (1889-1930). Para compreender Lampião, é imperativo primeiro compreender o mundo que o forjou.
A Terra, a Seca e a Fome: A Estrutura da Miséria
O sertão nordestino no final do século XIX e início do século XX era um cenário de extrema desigualdade socioeconômica. A estrutura agrária era dominada pelo sistema de latifúndios, onde vastas extensões de terra e, consequentemente, a riqueza e o poder, estavam concentradas nas mãos de poucas famílias. A maioria da população vivia em um estado de dependência, miséria e abandono social, com acesso limitado a recursos básicos como moradia adequada, educação e saúde.

Sobreposta a esta estrutura social injusta, a região era ciclicamente assolada por secas devastadoras. Estes não eram meros eventos climáticos; eram catalisadores que magnificavam as desigualdades existentes, levando à fome generalizada, à perda de colheitas e rebanhos, à migração em massa e a uma profunda instabilidade social. A resposta do Estado a estas crises era frequentemente insignificante, ineficaz ou marcada pela corrupção, com os parcos recursos governamentais sendo desviados para interesses privados, o que aprofundava o sentimento de abandono e desesperança entre os sertanejos.
A Lei do Coronel: Poder, Violência e a Ausência do Estado
O poder político na República Velha era exercido através do “coronelismo”, um sistema no qual grandes proprietários de terras, os “coronéis”, detinham controle absoluto sobre a vida local. Este poder não era apenas econômico; era político e social. Os coronéis controlavam as eleições em seus “currais eleitorais” através da troca de favores, do clientelismo e da coação, uma prática conhecida como “voto de cabresto”. Para manter a ordem e defender seus interesses, mantinham milícias privadas de jagunços.
Neste contexto, o Estado formal era uma entidade distante e ineficaz. Em muitas áreas remotas do sertão, a justiça pública era inexistente ou completamente subserviente aos interesses dos coronéis. A lei era a lei do mais forte, e a vingança privada era, muitas vezes, a única forma de “justiça” acessível. Este vácuo de poder e a ausência de um sistema judicial confiável criaram um ambiente fértil para o surgimento de formas alternativas e violentas de autoridade, como o cangaço. O cangaço, portanto, não pode ser visto como uma anomalia, mas como um sintoma violento de uma falha sistêmica profunda, uma consequência direta da combinação de miséria, concentração de poder e abandono estatal.
A relação entre os cangaceiros e os coronéis era notavelmente fluida e complexa, longe de ser uma simples oposição entre opressores e oprimidos. Era uma dinâmica de conveniência, caracterizada tanto por antagonismo quanto por simbiose. Por um lado, os coronéis frequentemente contratavam cangaceiros como jagunços para executar seus desafetos e proteger seus interesses. Por outro lado, os bandos de cangaço eram uma ameaça constante aos mesmos coronéis, atacando suas fazendas e extorquindo dinheiro. Lampião, em particular, forjou alianças estratégicas com coronéis poderosos que lhe forneciam proteção e suprimentos. Isso demonstra que o cangaço operava dentro da violenta lógica de poder do sertão, muitas vezes espelhando sua arbitrariedade, em vez de oferecer uma alternativa revolucionária. A aspiração de um cangaceiro, como observou o historiador Durval Muniz, era, no fundo, tornar-se ele mesmo um coronel.

O Grito dos Excluídos: Banditismo Social ou Crime Organizado?
A natureza do cangaço é objeto de um intenso debate na historiografia brasileira, que se divide em duas correntes principais de interpretação.
A primeira, influenciada pelo conceito de “banditismo social” do historiador Eric Hobsbawm, vê o cangaço como uma forma primitiva de revolta camponesa. Nesta perspectiva, os cangaceiros são interpretados como justiceiros ou “heróis” populares, figuras de resistência que, apesar da violência, defendiam os pobres contra a opressão dos coronéis e a negligência do Estado.
A segunda corrente, que ganhou força a partir dos anos 2000, rejeita essa visão romantizada. Ela enquadra o cangaço como uma forma de crime organizado, argumentando que os cangaceiros eram motivados principalmente pelo interesse próprio. Segundo esta visão, eles não possuíam qualquer agenda política ou social, dedicando-se a roubos, sequestros, estupros e assassinatos para garantir sua sobrevivência e enriquecimento.
Mas quem foi ou era Lampião?
De Virgulino a Lampião: A Forja de um Rei

A trajetória de Virgulino Ferreira da Silva não foi a de um destino inevitável, mas o resultado de um conjunto específico de circunstâncias pessoais que colidiram com um ambiente social permissivo à violência, transformando um jovem sertanejo no mais temido e famoso cangaceiro da história do Brasil.
O Jovem de Família Modesta, Não Miserável
Contrariamente ao mito de que Lampião emergiu da miséria abjeta, os registros históricos indicam que sua família possuía uma condição financeira razoável para os padrões da época. Eram pequenos proprietários de terras e criadores de gado, respeitados na comunidade de Vila Bela, hoje Serra Talhada, em Pernambuco. Virgulino não era um sertanejo desesperado e analfabeto; ele aprendeu a ler e a escrever, um diferencial significativo na época, e trabalhava como almocreve, um transportador de mercadorias em lombo de burro. Esta profissão, herdada de seu pai, não apenas lhe proporcionava um rendimento, mas também um conhecimento íntimo da geografia, das trilhas e dos esconderijos do sertão, uma habilidade que se provaria inestimável em sua futura vida no cangaço.
O Ponto de Inflexão: Honra, Vingança e a Morte do Pai
A entrada de Virgulino no mundo da violência foi precipitada por uma disputa de terras e honra com uma família vizinha, a de José Saturnino. A contenda, marcada por acusações mútuas de roubo e ofensas, escalou a ponto de o pai de Lampião, José Ferreira, decidir vender suas propriedades e se mudar com a família para evitar um derramamento de sangue. A perseguição, no entanto, continuou.
O evento catalisador que selou o destino de Virgulino ocorreu em maio de 1921, quando seu pai foi assassinado por uma volante policial. Este ato transformou uma disputa familiar em uma vingança pessoal e intransigente contra as autoridades. Foi a morte do pai que o impulsionou, juntamente com seus irmãos, a ingressar definitivamente no cangaço, jurando lutar até a morte para vingar a honra da família. Fica claro, portanto, que a motivação inicial de Lampião não era uma ideologia de justiça social abstrata, mas um desejo concreto e pessoal de vingança. O que começou como uma busca por reparação familiar metastatizou-se, ao longo de quase duas décadas, em um estilo de vida baseado no crime organizado.
A Ascensão do “Rei do Cangaço”

Em 1921, Virgulino juntou-se ao bando de um cangaceiro já estabelecido, Sebastião “Sinhô” Pereira, onde rapidamente aprendeu as táticas de guerrilha e sobrevivência na caatinga. Seu talento para a liderança, sua inteligência estratégica e seu carisma eram evidentes. Já em 1922, ele assumiu o comando de seu próprio bando, que cresceria em número e notoriedade.
Lampião tornou-se o “Rei do Cangaço” e o “Governador do Sertão”, estabelecendo um poder paralelo que desafiou o Estado por quase vinte anos, atuando em sete estados do Nordeste (Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Sergipe, Alagoas e Bahia). Seu apelido, “Lampião”, teria surgido de sua habilidade de atirar tão rapidamente que o clarão dos disparos iluminava a noite como um lampião.
O Rastro de Sangue: A Face de Vilão
Qualquer tentativa de romantizar Lampião como um herói esbarra na muralha de evidências de sua extrema brutalidade. A análise de suas ações revela um padrão de violência que transcende a lógica da autodefesa ou da justiça social, caracterizando-o, sob qualquer ótica moderna de direitos humanos, como um vilão.
A Tática do Terror: Saques, Extorsão e Sequestros
O modus operandi do bando de Lampião era baseado na predação. Eles atacavam sistematicamente pequenas cidades, vilas e fazendas, saqueando bens, incendiando propriedades e aterrorizando a população. Sequestros de pessoas influentes para a obtenção de resgate eram uma prática comum.
Mais revelador ainda era o seu sistema de extorsão. Lampião e seus homens enviavam bilhetes ameaçadores a fazendeiros, comerciantes e autoridades locais, exigindo grandes somas em dinheiro como pagamento por “proteção”. Essa prática, conhecida como “saque elegante”, assemelha-se muito mais ao modelo de negócio de uma organização mafiosa do que às ações de um revolucionário que busca a redistribuição de riqueza. A operação de Lampião evoluiu para uma sofisticada empresa criminosa que lucrava com o terror. A descoberta de quase quatro quilos de ouro e grandes quantias em dinheiro junto aos seus corpos em Angico serve como um balanço final desta empresa, confirmando que o objetivo era o lucro, não a caridade.
A Crueldade como Método e Espetáculo
A violência do bando não era apenas instrumental; era frequentemente ritualística e performática, projetada para infligir o máximo de terror psicológico e servir como um aviso público. As atrocidades cometidas eram um espetáculo macabro, destinado a consolidar a reputação do bando e garantir a obediência através do medo.
A violência sexual era sistemática e hedionda. Relatos como o de Dulce Menezes dos Santos, raptada e violentada na adolescência por um membro do bando, e a história de Dadá, sequestrada pelo cangaceiro Corisco aos 12 anos e mantida como escrava sexual, expõem uma das facetas mais sombrias do cangaço. A tabela a seguir documenta alguns dos crimes mais notórios atribuídos a Lampião e seu bando, fornecendo um registro factual que contrasta fortemente com a lenda heroica.
| Data/Período | Localização | Evento |
| Junho de 1927 | Mossoró, RN | Fracassada tentativa de invasão de uma cidade de porte médio, precedida pela destruição da infraestrutura (estação ferroviária, telégrafo) da vila vizinha de São Sebastião. |
| Abril de 1931 | Uauá, BA | Execução pública por “sangramento” (punhalada na clavícula) de um homem, José Pequeno, acusado de ser delator. |
| Indeterminado | Carro Quebrado, BA | Assassinato de um grupo de homens que trabalhavam na construção de uma estrada. |
| Indeterminado | Porto da Folha, SE | Ataque à Fazenda Campos Novos: o proprietário foi torturado, degolado e esquartejado. Cerca de quinze moças da fazenda foram estupradas coletivamente, enquanto seus pais e irmãos eram forçados a assistir e dançar com as roupas das vítimas. |
| Indeterminado | Vários locais | Sequestro sistemático e estupro de meninas e adolescentes, incluindo Dadá (12 anos), Sila (11 anos) e Dulce (15 anos). |
| Indeterminado | Vários locais | Prática de tortura e mutilação, como marcar o rosto de mulheres com ferro de gado em brasa e arrancar os olhos de vítimas antes de executá-las. |
O Justiceiro do Povo: A Face de Herói
Apesar do registro avassalador de sua crueldade, a imagem de Lampião como herói persiste. Essa construção heroica está menos fundamentada em suas ações concretas e mais na percepção de uma população desesperada e no poder simbólico de sua rebeldia.
O “Robin Hood da Caatinga”: Realidade ou Percepção?
A alcunha de “Robin Hood do sertão” baseia-se na crença popular de que Lampião roubava dos ricos para dar aos pobres. Embora existam relatos anedóticos de atos de generosidade, eles são esporádicos e contraditórios quando comparados à sua prática sistemática de extorsão e saque, que vitimava tanto ricos quanto pobres.
A heroicização de Lampião parece derivar mais de um mecanismo de “heroísmo por procuração”. Em um contexto de opressão absoluta por parte dos coronéis e de ausência do Estado, qualquer ato de desafio contra essa estrutura de poder era interpretado pela população como um ato de justiça, independentemente da motivação real do cangaceiro. Os sertanejos não celebravam necessariamente seus crimes, mas sim o fato de que alguém, finalmente, estava desafiando com sucesso a autoridade que os oprimia a todos. Ele era um herói por contraste com os vilões oficiais.
A Rede de Apoio: O Papel Crucial dos Coiteiros
A longevidade do bando de Lampião seria impensável sem a vasta rede de apoio dos “coiteiros”. Eram fazendeiros, comerciantes, sertanejos comuns e até mesmo coronéis aliados que forneciam abrigo, comida, munição e, crucialmente, informação. As motivações para dar coito eram complexas, variando da simpatia genuína e laços de parentesco ao medo de represálias e ao pragmatismo de se aliar ao poder local de fato. Essa rede clandestina era a verdadeira força vital do cangaço, permitindo que Lampião e seus homens se movessem pela caatinga e evadissem as forças policiais por duas décadas.
O Símbolo da Rebeldia Sertaneja
Acima de tudo, Lampião tornou-se um poderoso ícone de resistência, orgulho e altivez para um povo que não tinha voz nem poder. Sua capacidade de iludir as volantes policiais por tanto tempo, sua astúcia e seu profundo conhecimento do sertão criaram uma lenda de invencibilidade que ressoava profundamente com aqueles que se sentiam impotentes e abandonados. Ele representava a afirmação, ainda que torta e violenta, do espírito de luta de um povo oprimido.
A Lenda Imortal: A Construção do Mito
A transformação do homem Virgulino no mito Lampião foi um processo complexo, do qual ele mesmo foi um coautor consciente e astuto. Ele não foi apenas objeto de lendas; ele ajudou a forjá-las.
O Espelho da Mídia: Fotografia e a Consciência da Imagem
Lampião demonstrou uma compreensão notavelmente moderna do poder da mídia e da imagem pública. Longe de se esconder, ele buscou ativamente a imprensa e a fotografia para construir e projetar sua persona. O episódio mais emblemático foi sua colaboração com o fotógrafo e cinegrafista libanês Benjamin Abrahão em 1936. As famosas fotografias e os poucos minutos de filme que restaram não são registros espontâneos, mas sim performances cuidadosamente encenadas. Nelas, o bando posa com orgulho, exibindo suas armas, suas vestimentas ornamentadas e uma imagem de organização e harmonia.
Lampião foi um mestre do marketing pessoal. Sua estética – o chapéu de couro em meia-lua, as roupas bordadas, as cartucheiras repletas de munição e as moedas de ouro – tornou-se uma marca registrada, um uniforme que comunicava poder e identidade. Ele foi um precursor da celebridade que entende de branding, e sua vitória estética, como notou o historiador Frederico Pernambucano de Mello, sobreviveu à sua derrota militar.
A Voz do Cordel: Filtrando a Realidade, Forjando a Lenda
A literatura de cordel foi o principal veículo de disseminação e moldagem da saga de Lampião. Esses folhetos populares, vendidos em feiras por todo o Nordeste, não eram meros repórteres dos fatos, mas sim arenas narrativas onde a realidade era filtrada e o mito era forjado. Os poetas de cordel frequentemente inseriam as ações de Lampião em arquétipos heroicos e épicos, exaltando sua coragem e suposto senso de justiça, enquanto minimizavam ou justificavam sua brutalidade.
O cordel tornou-se o campo de batalha moral onde o legado de Lampião era disputado. A existência de folhetos antagônicos, como o famoso “A Chegada de Lampião no Céu” de Guaipuan Vieira e “A Chegada de Lampião no Inferno” de José Pacheco, ilustra perfeitamente essa função. Foi através desses versos populares que os fatos brutos de sua vida foram processados, digeridos e transformados em lendas duradouras e conflitantes.
O Homem de Corpo Fechado: Misticismo e Invencibilidade
A lenda de Lampião foi amplificada por uma forte aura de misticismo. A crença popular de que ele possuía um “corpo fechado”, ou seja, um corpo magicamente protegido contra balas e facas, era generalizada. Essa crença, alimentada por suas duas décadas de fugas espetaculares e sobrevivência contra todas as probabilidades, reforçava sua liderança carismática e o elevava a um status quase sobrenatural, tanto aos olhos de seus seguidores quanto de seus inimigos.
Angico e a Eternidade: Morte, Memória e Legado
O reinado de Lampião chegou a um fim abrupto e violento, mas sua morte não significou o fim de sua história. Pelo contrário, marcou o início de sua imortalização como uma das figuras mais complexas e duradouras da cultura brasileira.
A Emboscada Final: Traição e Massacre na Grota do Angico
Na madrugada de 28 de julho de 1938, o destino de Lampião foi selado. Traído por um coiteiro, Joca Bernardes, o esconderijo do bando na Grota do Angico, em Sergipe, foi revelado a uma volante da polícia alagoana comandada pelo tenente João Bezerra. Armados com metralhadoras, uma novidade tecnológica que deu aos policiais uma vantagem decisiva, eles cercaram o acampamento. O ataque foi rápido e letal. Em poucos minutos, Lampião, sua companheira Maria Bonita e outros nove cangaceiros foram mortos a tiros. O episódio marcou o declínio irreversível do cangaço como fenômeno organizado.
As Cabeças-Prêmio: A Barbárie como Símbolo do Estado

O que se seguiu ao massacre foi um ato de barbárie calculado. Os onze cangaceiros mortos foram decapitados. Suas cabeças, conservadas em sal e querosene, foram exibidas como troféus macabros em um cortejo por várias cidades do Nordeste, culminando em sua exposição pública na escadaria da prefeitura de Piranhas, em Alagoas.
Este ato não foi apenas uma prova da morte do “Rei do Cangaço”. Foi uma poderosa declaração simbólica do Estado, então sob a ditadura centralizadora de Getúlio Vargas. O mito de Lampião era construído sobre sua invencibilidade e seu “corpo fechado”. Ao exibir sua cabeça decepada, o Estado destruía não apenas o homem, mas o mito de sua intocabilidade. Ironicamente, para derrotar a barbárie do cangaço, o Estado recorreu a uma barbárie espelhada, uma demonstração visceral de que seu poder era, em última análise, absoluto. As cabeças permaneceram expostas em um museu em Salvador por mais de 30 anos, sendo finalmente sepultadas em 1969, após uma longa campanha de suas famílias.
O Legado na Cultura Popular: Música, Cinema e Arte
A derrota militar de Lampião foi sua vitória cultural. O cangaço deixou uma marca indelével e multifacetada na cultura brasileira, com sua estética e suas narrativas sendo constantemente revisitadas e reinterpretadas. A tabela abaixo ilustra a amplitude desse legado.
Literatura de Cordel
“A Chegada de Lampião no Céu” (Guaipuan Vieira), “A Chegada de Lampião no Inferno” (José Pacheco) , e inúmeras obras que narram seus feitos.
Música
“Mulher Rendeira” (tradicional, cantada por Volta Seca) , “Lampião Falou” (Luiz Gonzaga) , canções de Zé Ramalho , “Cantiga de Cangaceiro”.
Cinema
O Cangaceiro (1953), Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), Baile Perfumado (1997).
Artes Visuais
Esculturas de barro do Mestre Vitalino, pinturas como “Retirantes” e “Menino Morto” de Cândido Portinari, que retratam o contexto do sertão.
Hoje, o legado de Lampião é também um produto comercial. A “Rota do Cangaço” atrai turistas para locais históricos no sertão , e a “Missa do Cangaço” é celebrada anualmente na Grota do Angico. Diversas cidades nordestinas disputam o título de “terra” de Lampião ou de algum evento marcante do cangaço, buscando alavancar o turismo.
Essa mercantilização, no entanto, expõe um conflito profundo. A memória do cangaço tornou-se um campo de batalha onde identidade cultural, verdade histórica e interesses econômicos colidem. A promoção turística frequentemente resulta em uma versão romantizada e higienizada da história, que glorifica os cangaceiros e apaga a memória de suas vítimas. Isso gera ressentimento entre os descendentes das vítimas e aqueles que rejeitam a associação da identidade nordestina com a violência do cangaço. A frase “Lampião: nem bandido, nem herói, ele é história!”, popularizada para mediar essa controvérsia, funciona menos como uma conclusão histórica e mais como um slogan de marketing, projetado para tornar uma história complexa e dolorosa palatável para o consumo turístico.
Entre a História e o Mito – O Veredito Impossível
Ao final desta análise, a questão inicial – Lampião era herói ou vilão? – revela-se inadequada. A resposta correta é que ele não pode ser reduzido a nenhuma das duas categorias de forma exclusiva.
Pelos padrões objetivos de suas ações, Virgulino Ferreira da Silva foi um vilão. Ele foi o líder de uma organização criminosa responsável por assassinatos, torturas, estupros, sequestros e extorsão em massa. Aterrorizou o sertão por duas décadas, deixando um rastro de sofrimento e morte. A evidência factual de sua crueldade é avassaladora e não deve ser romantizada ou esquecida.
No entanto, ele se tornou um herói no imaginário popular. Este status heroico não nasceu de sua virtude, mas de seu poder simbólico. Em uma terra marcada pela injustiça, pela miséria e pelo abandono, sua audácia e sua capacidade de desafiar o sistema opressor fizeram dele um ícone de rebeldia e orgulho. Sua heroicização é um espelho da profunda desesperança de um povo, não um atestado do caráter do homem.
O veredito final é que Lampião foi um produto complexo, contraditório e monstruoso de um tempo e lugar brutais. Ele foi um sintoma da doença social do sertão, não a sua cura. Seu legado, duradouro e controverso, permanece como um poderoso testamento das tensões históricas não resolvidas do Brasil em torno da desigualdade, da violência e da própria definição de justiça. Lampião é um espelho sombrio, e as imagens conflitantes que ele reflete revelam mais sobre a sociedade que o produziu e que continua a debatê-lo do que sobre a figura em si.
Eu também não estou aqui querendo dar uma opinião absoluta sobre Lampião e seu bando.














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