Porto Alegre, Teresina, 30 de agosto de 2025 – A notícia chegou feito uma daquelas viradas de trama que ele mesmo adoraria escrever: inesperada, ainda que, de certa forma, aguardada pela inexorabilidade do tempo. Luis Fernando Verissimo nos deixou. Aos 88 anos, o saxofonista das palavras, o cronista que transformava o pão nosso de cada dia em banquete de ironia e inteligência, silenciou. O Brasil amanheceu menos engraçado, menos sagaz, e um pouco mais óbvio, algo que ele jamais permitiu que sua literatura fosse.
A causa, informam os sites de notícias, foram complicações de uma pneumonia. Mas, para quem se acostumou a ler a vida pelas entrelinhas que ele nos oferecia, Verissimo partiu de um mal incurável: a realidade, que, por mais absurda que fosse, ele sempre conseguia, com seu humor, tornar minimamente suportável. Agora, a realidade nos bate sem o seu filtro genial.
Falar da importância de Verissimo é como tentar explicar o sal na comida: sua presença era tão fundamental e tão integrada ao nosso paladar intelectual que só sua ausência nos faz sentir a verdadeira insipidez das coisas. Ele cometeu a façanha de ser, ao mesmo tempo, um gigante da literatura e o vizinho de porta que contava as melhores histórias. Herdeiro de um nome já monumental – o de seu pai, Erico Verissimo –, Luis Fernando não se escorou no legado; construiu o seu próprio, não com a densidade épica de “O Tempo e o Vento”, mas com a leveza cortante da crônica diária.
E foi aí que ele mudou o jogo. Antes dele, a literatura parecia habitar um Olimpo de ternos bem cortados e discussões herméticas. Verissimo desceu dos céus, vestiu um jeans confortável e sentou-se à mesa do bar para nos contar sobre o nosso próprio ridículo. Ele nos apresentou a nós mesmos. Em seus textos, vimos nossas manias, nossas pequenas hipocrisias, as brigas de casal, a desconfiança com o político, o desespero da segunda-feira e a glória do happy hour.
Personagens como o Analista de Bagé, com sua psicanálise de gauchismo prático e respostas mais diretas que um coice de mula, não eram apenas caricaturas. Eram um espelho que debochava da nossa mania de complicar o que é simples. A Velhinha de Taubaté, a última pessoa no Brasil que acreditava no governo, era a mais refinada e hilária crítica a um país que, durante a ditadura militar e muito depois dela, vivia afogado em narrativas oficiais que ofendiam a inteligência. Com ela, ele nos ensinou a duvidar sorrindo. E como não lembrar de Ed Mort, o detetive particular mais “pé-rapado” e genuinamente brasileiro, que, em sua busca por um caso (e pelo dinheiro do aluguel), desvendava uma sociedade tão caótica quanto ele?
Verissimo democratizou a inteligência. Seus textos, publicados em jornais de grande circulação, eram pílulas de sabedoria disfarçadas de piada. Ele nos mostrou que o humor não é o oposto da seriedade, mas uma ferramenta para alcançá-la. Era por meio da gargalhada que ele nos fazia refletir sobre a ditadura, a corrupção, a burocracia, o casamento e a própria finitude da vida. Ele tinha a rara habilidade de falar sobre a morte com a mesma naturalidade com que falava de futebol, talvez porque entendesse ambas como espetáculos cheios de absurdos e paixões inexplicáveis.
Em uma de suas frases célebres, disse: “No fim, pensando bem, a vida é uma grande piada. Acontece tudo isso com a gente, e a gente morre… que piada, né? Que piada de mau gosto. Mas acho que temos que encarar isso com uma certa resignação, uma certa bonomia.”
Hoje, a piada parece ter perdido a graça. A partida de Luis Fernando Verissimo não é apenas a perda de um escritor; é o fim de uma conversa diária, inteligente e bem-humorada que o Brasil tinha consigo mesmo. Ele nos ensinou que a vida, com todas as suas complicações e dores, pode ser observada por um ângulo que revele sua comédia intrínseca. Olhar para o cotidiano e não encontrar uma nova crônica sua será como acordar e descobrir que o mundo, subitamente, ficou em preto e branco.
A prateleira da literatura brasileira fica maior, mais solene, mas também mais triste. O saxofone calou, mas a melodia de suas palavras – irônica, precisa e profundamente humana – continuará a ecoar. Ele se foi, mas nos deixou a lição mais importante: a de que, para entender a vida como ela é, talvez a melhor maneira seja começar por uma boa gargalhada. E disso, chefe, a gente entende. Foi o mestre quem ensinou.














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