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Crítica | Com Selton Mello, O Mecanismo, série sobre a Lava Jato chega à Netflix

O Mecanismo é uma série com potencial, mas que não é plenamente realizado aqui. Ela incomoda? Certamente

Bichos escrotos
Saiam dos esgotos
Bichos escrotos
Venham enfeitar
Meu lar, meu jantar
Meu nobre paladar!
– Titãs

Produzir conteúdo audiovisual sobre eventos, especialmente eventos políticos, que, de uma forma ou de outra, ainda estão em andamento, é uma tarefa ao mesmo tempo corajosa e arriscada, especialmente se levarmos em consideração o mundo polarizado em que vivemos, com lados entrincheirados, aguerridos e prontos para boicotar obras e vociferar contra tudo que não compartilha de suas respectivas ideologias. É uma pena que isso aconteça, mas isso de forma alguma significa que eventos presentes – ou pelo menos recentes – não devam ser convertidos em obras de ficção, sejam de um lado ou de outro do espectro político.
O Mecanismo, produção brasileira do Netflix capitaneada por José Padilha, cuja primeira colaboração nos trouxe Narcos, dá um tratamento ficcional, em sua primeira temporada, ao começo da Operação Lava Jato, com base no livro Lava Jato: O Juiz Sergio Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil, de Vladimir Netto. Padilha, mestre em abordar a história brasileira recente, sabe transformar um texto árido e potencialmente moroso (sem trocadilho) em um thriller policial interessante e aterrador que de forma alguma tenta esconder – e nem deveria – seu posicionamento político. O viés é de exaltação da operação capitaneada pela Polícia Federal (aqui Federativa) de Curitiba, com personagens que se aproximam muito dos originais, com apenas mudanças de nomes – por vezes jocosas e caricaturais como Dilma Roussef ser Janete Ruscov e Michel Temer ser  Samuel Themes – e situações que espelham de maneira eficiente os meandros ou “mecanismos” da corrupção no Brasil, algo que o roteiro deixa muito claro que não é novidade e nem exclusividade daqueles retratados na série.
Os roteiros dos episódios, todos escritos por Elena Soarez, são para lá de didáticos, com repetições infindáveis que batem na mesma tecla monocórdia praticamente a todo capítulo como o “combater o câncer não deixa ninguém incólume” e coisas assim. Mas existe uma razão para isso, ainda que não absolva seus textos: a série é brasileira, mas foi feita para ser “vendida” para o mundo todo, assim como são todas as séries produzidas pelo Netflix. Portanto, assim como outras séries fortemente politizadas como a terrível Marseille, os eventos são compassadamente explicados em seus mínimos detalhes, até porque, para muito país por aí, os meandros da podridão que envolve doleiros, estatais, empreiteiras e diretamente o governo e toda a base política é coisa de ficção científica, pelo menos no grau de amplitude e de profundidade com que isso se fincou no Brasil basicamente desde que Cabral chegou por aqui.
Mas a nojeira histórica também não pode servir de salvo conduto para o lodaçal do presente ser perpetuado e a operação Lava Jato – a verdadeira ou a ficcional – tem seu papel importante na tentativa de se colocar o país novamente nos trilhos. O que realmente espanta nos roteiros de Soarez, sendo seu verdadeiro e principal ponto positivo, é como a autora deixa claro, nas entrelinhas, que esse “mecanismo” não é unicamente algo criado da cabeça de políticos bandidos ajudados por empresários mais bandidos ainda. Ao contrário, de maneira elegante e discreta, Soarez coloca a culpa em nós, brasileiros, em nossa cegueira em compreender que aquilo que fazemos de errado no dia-a-dia – desde jogar lixo na rua, passando por parar em vagas de idosos “só por um minutinho”, entrar no vagão de mulheres no metrô “sem querer”, até dar um “dinheirinho” para policiais para não levar multa e muito mais – é a base para a roubalheira em larga escala que estamos vendo a céu aberto hoje em dia. Tenho certeza que muita gente discordará dessa afirmação, mas é justamente a discordância sobre esses aspectos pequenos que vemos acontecer toda hora que se transforma em negligência ao ser encarada com naturalidade e “parte da vida”, desaguando na postura simplista do “eles é que são corruptos, eu não!”. Basta parar e pensar para ver que o famoso “jeitinho” é a raiz de um ciclo vicioso inquebrantável.
O mérito do roteiro, porém, acaba sendo diluído não só pelo didatismo exacerbado representado pelas narrações em off, como também pela quantidade de chavões e frases de efeito que Soarez insere na narrativa, algo que obviamente ecoa a base dos bem sucedidos Tropa de Elite, mas que, aqui, cansa pela repetição, ainda que o “Fez merda, né? Bom, vamos comigo que a gente vai desfazer essa merda.” e o “Quem é que foge para Brasília?” sejam memoráveis.
No campo das atuações, Selton Mello mais uma vez mostra que é um dos melhores atores brasileiros de sua geração, mesmo considerando sua irritante incapacidade de falar para fora, marca registrada sua desde os primórdios que torna a compressão do que ele balbucia bastante complicada (santa legenda!). Mas ele realmente está bem como o obsessivo e completamente perturbado delegado da policial federal Marco Ruffo (o avatar do delegado Gerson Machado) que, em 2003, consegue finalmente prender seu colega de infância e doleiro infame Roberto Ibrahim (Enrique Díaz encarnando a versão da série de Alberto Youssef), somente para ver o trabalho de sua vida desfeito pela sana justiceira do Ministério Público.
Aqui, a série faz algo inesperado e, em uma elipse de 10 anos, nos arremessa de 2003 para 2013, agora com a delegada Verena Cardoni (Caroline Abras como o avatar da agente Erika Marena) não só no comando da nova versão da operação, como também no protagonismo efetivo da série até seu fim. Foi uma escolha arriscada, mas Abras mostra firmeza interpretando sua personagem, mesmo que por vezes pareça muito “dura”, talvez em função de um roteiro que não lhe dê lá muito espaço interpretativo.
Quem realmente, porém, se destaca é mesmo Enrique Díaz, em atuação que imediatamente me lembrou a de Robert Knepper como T-Bag, em Prison Break, ou seja, um bandido safado e cafajeste moldado para que o odiemos, mas ao mesmo tempo que o amemos. Chega a ser uma incongruência, mas é um daquele prazeres inevitáveis que volta e meia temos que encarar e aceitar no cinema e na televisão. Díaz é o grande destaque da temporada, mastigando o cenário em todas as cenas em que aparece, mesmo quando contracena com Mello.
Em termos estruturais, a série é como seu roteiro: burocrática. São tomadas externas com câmera parada intercaladas com internas da mesma forma, às vezes com arroubos de movimentação que não acrescentam dramaticidade à narrativa além de um fim em si mesmo. Não é nada que desabone a série, mas também não lhe traz qualquer qualidade efetivamente destácavel, parecendo que a fotografia principal foi feita na correria. O mesmo vale para a direção de fotografia em si que usa filtros chapados, fazendo com que as sequências – independente do lugar onde se passam – sejam quase que completamente iguais, diferenciadas apenas pelas legendas “geográficas” e pelos establishing shots aéreos de cada cidade.
O Mecanismo é uma série com potencial, mas que não é plenamente realizado aqui. Ela incomoda? Certamente. É feita para isso, especialmente quem se recusa a aceitar a existência do problema e quem defende seus políticos de estimação. Portanto, inevitavelmente, ela cumpre sua função e o boicote de certas pessoas que preferem não encarar tudo que contrarie seu posicionamento político só ajuda seu IBOPE. É torcer para que Padilha saiba isolar o que a primeira temporada teve de bom e caprichar de verdade na próxima. Pois material é o que não falta, infelizmente…

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O Mecanismo (Brasil, 23 de março de 2018)
Showrunner: José Padilha, Elena Soarez
Direção: José Padilha, Felipe Prado, Marcos Prado, Daniel Rezende
Roteiro: Elena Soarez (baseado em obra de Vladimir Netto)
Elenco: Selton Mello, Caroline Abras, Enrique Díaz, Otto Jr., Jonathan Haagensen, Antonio Saboia, Alessandra Colassanti, Lee Taylor, Leonardo Medeiros, Ravel Cabral, Susana Ribeiro
Duração: 43 min. por episódio (8 episódios no total)
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