A obra-prima niilista de Mohiro Kitoh e a ousada aposta da Devir no leitor brasileiro: uma análise sem spoilers do mangá que te faz questionar tudo.
Há livros que lemos para escapar da realidade. E há Bokurano. Publicado no Brasil pela corajosa (ou insana) editora Devir, o mangá de Mohiro Kitoh não é uma fuga, mas um mergulho de cabeça na mais fria e desconfortável das águas: a da condição humana. Não se trata de uma história para relaxar após um dia de trabalho. Trata-se de uma obra que talvez te faça precisar relaxar após a leitura.
Na verdade, Bernardo, me deu o primeiro volume de Bakurano em Fevereiro num evento que estavamo participando, e olha, finalmente estou escrevendo sobre o mangá, já que tenho certeza que ele duvidou de mim. Errou, errou rude, errou feio, Bernardo.
O Mangá: O Peso do Nosso Mundo
Esqueça as batalhas de robôs espetaculares e os gritos de “vamos lá!”. A premissa, é um contrato macabro: crianças pilotam um mecha para salvar a Terra, e cada vitória custa a vida do piloto. Sem spoilers, o brilhantismo de Bokurano não está nos combates, que são muitas vezes curtos e anticlimáticos. O verdadeiro campo de batalha é o psicológico.

A genialidade da obra reside nos interlúdios, no tempo que cada criança tem entre ser designada como o próximo piloto e sua batalha final. O que você faria com suas últimas semanas de vida? Como você, uma criança com seus próprios traumas, medos e desejos, encararia o fato de que sua morte é um sacrifício inevitável por um mundo que talvez nem mereça ser salvo?
A narrativa é lenta, introspectiva e deliberadamente desconfortável. Mohiro Kitoh nos força a caminhar com cada um desses jovens, a sentir o peso de suas decisões e a testemunhar a desconstrução de qualquer heroísmo ingênuo. Não espere reviravoltas mirabolantes, mas sim o peso esmagador da consequência. É um soco no estômago que você vê chegando de longe, e ainda assim, não consegue desviar.
O Autor: Mohiro Kitoh, o Arquiteto da Desolação
Para entender Bokurano, é preciso entender seu criador. Mohiro Kitoh não escreve histórias felizes. Ele é um arquiteto que projeta cenários extremos para testar os limites da empatia, da moralidade e da esperança. Seu traço, muitas vezes descrito como simples ou até “desajeitado”, funciona como uma ferramenta narrativa poderosa. A ausência de um estilo vistoso e heroico ancora a história em uma realidade palpável, tornando a brutalidade temática ainda mais chocante.
Kitoh não oferece respostas fáceis. Ele simplesmente apresenta a situação, desenvolve seus personagens com uma honestidade cruel e deixa que o leitor lide com os destroços emocionais. Ele não está interessado em super-heróis; está interessado em pessoas — falhas, quebradas e, por vezes, surpreendentemente resilientes.
O Veredito no Ar: O Brasil Comprará Essa Briga?
A Devir, ao trazer Bokurano para o Brasil, fez mais do que lançar um novo mangá. Ela fez uma aposta. Uma aposta de que existe um público leitor maduro, faminto por obras que desafiam em vez de apenas entreter. A edição nacional, em formato de luxo, é um objeto de respeito, um tratamento digno para uma obra deste calibre.
Mas aqui reside a grande questão, o suspense que nenhuma página do mangá irá resolver. Não se engane, Bokurano não é ruim. Pelo contrário, é uma obra-prima em sua proposta, um marco do gênero seinen. A questão não é a qualidade, mas a compatibilidade com o paladar.
Estará o leitor médio brasileiro, frequentemente nutrido pelo poder da amizade, pela superação e por vitórias catárticas, pronto para uma história cujo tema central é o preço da existência? Estamos dispostos a trocar a dopamina do “shonen de porrada” pela reflexão melancólica do sacrifício?
A Devir colocou o prato na mesa. É uma iguaria rara, amarga e, para quem se atreve, inesquecível. Resta saber se o nosso mercado tem apetite — e estômago — para a digestão. A prateleira (ou o carrinho de compras online) dará a resposta.
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