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HQ do Baú | Mai, a garota sensitiva

Conheça nossa HQ do baú! Antes de Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco, nós já tínhamos mangás nas bancas do Brasil: conheça Mai, a garota sensitiva e o que Naoki Urasawa tem a ver com isso!

Conheça nossa HQ do baú! Antes de Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco, nós já tínhamos mangás nas bancas do Brasil: conheça Mai, a Garota Sensitiva e o que Naoki Urasawa tem a ver com isso!

Antes do que ficou conhecido como a onda dos mangás no Brasil, iniciada no ano de 2000 com a chegada de Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco, pela editora Conrad, nós tivemos algumas iniciativas importantes e outras dignas de nota. Provavelmente você conhece Akira, que foi lançado pela GLobo a partir de dezembro 1990, ou mesmo o Lobo Solitário, que chegou por aqui em março de 1988. Mas é bem possível que você não conheça a experiência da Abril, com o que poderia ter sido sua linha editorial de mangás, com Mai, a garota Sensitiva e A Lenda de Kamui, publicados em 1991 e 1992.

Nós vamos falar um pouco sobre “Mai A Garota Sensitiva”, que tive a oportunidade de ler apenas agora, apesar de lembrar muito das propagandas do título que havia no meio das revistinhas Marvel/DC, da Abril. Aliás, essa é a primeira curiosidade que tenho para falar sobre esse assunto: por ter visto muitos anúncios sobre o título no meio das revistinhas que eu costumava ler, mas nunca ter encontrado uma única Mai na solitária banca de revistas da minha cidade do interior, acabei gestando certa curiosidade e expectativa com o título, o que, na maioria das vezes, não é bom.

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Quando Mai chegou ao Brasil, Akira já estava sendo publicado pela Globo na altura da edição 20, então a editora Abril decidiu investir em um mercado que já estava, vaga e inicialmente, desbravado. Posso apenas conjecturar uma reunião editorial onde os responsáveis se perguntavam o que era aquele gibi estranho que estava fazendo sucesso em nossas bancas e que eles precisariam lançar sua própria Akira, algo que fosse semelhante em temática e para o mesmo público. Então, alguém teria colocado Mai na mesa, um gibi sobre uma garota com poderes psíquicos, com certa violência e algum erotismo (e as semelhanças param aí!).

Em terras nipônicas, Mai deve ter representado mais do mesmo, e não fez grande sucesso por lá, tendo durado apenas 53 capítulos semanais, que acabaram não gerando nenhuma animação, o que normalmente acontece apenas com sucessos de público. Talvez, a escolha dela para o ingresso no mercado americano, assim como no caso de Akira, seja justificada pelo traço mais sóbrio do que encontramos na maioria dos mangás, menos caricatural, e com excelentes cenários, muito realistas, uma mistura mais palatável para o nosso gosto, ainda não acostumado a um estilo mais, por assim dizer, excêntrico e comum aos mangás.

Acredito que não seria precipitado dizer que a razão do sucesso de Mai no ocidente se deu, muito mais, pelo ineditismo que foi esta onda de mangás no mercado norte-americano e pelo excelente traço de Ryoichi Ikegami, do que por quaisquer outros méritos que a obra possa vir a ter.

O Crying Freeman, de Ryoichi Ikegami, que fez sucesso no Brasil.

Antes que pudesse ter lido, Mai se tornou um exemplo de manga clássico-cult, do qual só tinha ouvido falar. Anos depois, viria descobrir que seu desenhista tornou-se mais conhecido no Brasil como “o cara que fez Crying Freeman, aquele que teve um filme com o Mark Dacascos”. Depois, descobri que Ryoichi Ikegami também fez o mangá de Homem Aranha (1970), que chegou a ter 2 volumes no Brasil pela Mythos, em 1998, além de ser o desenhista de Sanctuary (Conrad), um mangá que acompanhei e do qual gostava muito, apesar de ter ficado incompleto no Brasil. Poxa! Era perfeitamente justificável a minha vontade de ler esse gibi! O fato é que a coleção, em 8 volumes com cerca de 150 páginas cada, só veio chegar às minhas mãos em 2020 e, aproveitei certa calmaria recente na quarentena para ler.

Sucesso nos EUA e filme do Tim Burton

Mai foi publicada, originalmente, na revista semanal Shonen Sunday, em 1985, com seis volumes encadernados. A versão brasileira foi similar à norte-americana, publicada em 1987 pela Viz Comics, também em oito edições. Por sinal, o fato de Mai ter sido sucesso nos EUA, assim como Akira, é o que deve ter despertado o interessa da Abril em querer publicá-la no Brasil.

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Inclusive, Mai fez sucesso maior nos EUA do que no Japão, tanto que Tim Burton (Batman) chegou a anunciar um projeto de versão em live-action, que seria um musical (!), ainda nos anos 90. Tudo indicava que Winona Ryder, que trabalhou com o diretor em Edward Mãos de Tesouras (1990) e Os Fantasmas se divertem (1988) interpretaria a protagonista (ficaria legal, vai!).

Winona Ryder como Mai iria ficar muito bom, você precisa concordar! Mas isso se tivesse acontecido nos anos 90.

Com o passar dos anos, Tim Burton envolveu-se com os filmes Ed Wood e O Estranho Mundo de Jack, e Mai não aconteceu. A propriedade chegou a passar pelas mãos de Francis Ford Coppola(!!!) e, em 2001, Mai teve até um roteiro escrito por Lisa Addario e Joey Syracuse (“famosos” por Querido Ditador e Uma Família em Apuros, entre outras coisas esquecíveis ou ignoráveis). Em 2010 houve rumores, depois de uma negociação envolvendo a Sony e os direitos do título, que Tim Burton teria conseguido de volta a papelada para ainda fazer sua sonhada adaptação de Mai. Quem sabe, num futuro não tão distante, isso aconteça (mas não mais com Winona no papel principal, por favor).

Mas o que é Mai? É bom?

Mai Kuju é uma colegial que tem poderes psíquicos, consegue levantar objetos e projetar uma onda de forte impacto com o poder do pensamento, entre outras coisas que descobrimos ao longo do gibi, como o poder de voar ou até mesmo de cura. Ela tenta viver de maneira discreta, incentivada pelo pai, que procura esconder a origem secreta e milenar dos poderes da garota.

Acontece que existe uma organização criminosa secreta, chamada Aliança da Sabedoria, que manipula poderosos governos ao redor do mundo e que sabe da existência de várias outras crianças poderosas, não apenas da Mai. A organização pretende mudar o mundo e essas crianças são a chave para a criação de uma nova realidade supremacista onde apenas os mais evoluídos super-humanos reinariam e originariam um novo povo na Terra. Mai precisa ser arrebatada para esta causa, ou então destruída para não se tornar um obstáculo.

Falando assim, até parece interessante. Acontece que sinopses podem enganar muito.

Antes de entrar nos detalhes da obra, preciso falar algumas linhas sobre o escritor de Mai, Kazuya Kudo. Ele também é autor de um mangá chamado Pineapple Army, história sobre um ex-fuzileiro que serviu no Vietnã e que foi publicada de 1985 a 1988 no Japão, chegou a começar a ser publicado nos EUA, pela Viz Media, mas foi cancelada em sua décima edição. No Brasil, o título teve ainda menos virgor, com uma única e sumida edição, que teve o nome alterado para “Combat!” (“Exército do Abacaxi” seria horrível, né?), pela editora, igualmente desconhecida, Pnc, em 2003.

O Pineapple Army que virou Combat!, ao invés de Exército do Abacaxi. Era desenhado por Naoki Urasawa (Monster) e escrito pelo mesmo autor de Mai.

Uma curiosidade é que Pineapple Army foi desenhado por um iniciante Naoki Urasawa, que viria a desenhar Monster e 20th Century Boys, tornando-se um dos desenhistas japoneses mais reverenciados no mundo hoje, evidenciando que Kazuya Kudo teve oportunidade de trabalhar com bons artistas, mas nem isso impediu que seu nome permanecesse em certo ostracismo: não se sabe mais nada sobre ele. E onde quero chegar com isso? Que Mai merece a relevância que hoje tem seu escritor.

Se Kazuya Kudo não se destaca positivamente ao longo das 8 edições do título, é inegável que o que mais chama atenção em Mai é o trabalho fenomenal de Ryoichi Ikegami nos desenhos. O realismo dos cenários, a dinâmica e o impacto das cenas, unidos à leveza dos traços nos personagens humanos, que pode ser incrivelmente exemplificado nas cenas de Mai Kuju flutuando sob os céus de Tóquio, fazem você realmente acreditar que o homem pode voar. Mas, infelizmente, Mai não são apenas desenhos bonitos.

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Olha só essa página da Mai voando!!! Dá até vontade de não colocar o mangá pra vender!

Eu tive toda boa vontade com a série e a li integralmente, mas no final das contas a impressão que tive era que Kazuya Kudo não fazia a mínima ideia do que iria escrever no capítulo seguinte. Existem reviravoltas narrativas e sumiços de personagens que fazem um grande desserviço à série.

Vou tentar não dar muitos spoillers e contar apenas sobre três personagens: Senzo Kaieda, Tsukiro e Takeru “Intetsu” Haguro. Senzo é o líder de uma agência no Japão que é submissa à Aliança da Sabedoria e, por conta dessa ligação, é o encarregado de vigiar e subjugar Mai. Fica bem claro que ele é um vilão! Ele manda ao encontro da pobre garota um monstro horrível, abissal, que estava preso dentro de um cofre enorme e superprotegido: o Tsukiro que, tudo indica, é a grande arma mortal da Agência Kaieda, mas que, na verdade, não passa de uma criatura bestial usando capa rasgada e mini cueca (que é o único ponto fraco de Ryoichi Ikegami na série, se tiver sido ele, realmente, o responsável por criar o visual dessa criatura).

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Acontece que Tsukiro conseguiria derrotar a inexperiente Mai não fosse a providencial chegada de Takeru “Intetsu” Haguro, que surge e o derrota, praticamente sem tirar as mãos dos bolsos. Neste ponto, aliás, apesar de Intetsu não ter nenhuma historia pregressa e simplesmente ser o maior fodão nas artes marciais capaz de derrotar a principal arma de destruição de uma das maiores agências do submundo japonês, antes de deixar a janta esfriar, acho Intetsu o melhor personagem do mangá, com mais simpatia e maior potencial de desenvolvimento, incluindo o elenco de apoio que o acompanha.

Infelizmente, Intetsu some ao final do volume 3 e só volta na última edição, pra dar aquela forcinha básica na reunião dos bons moços para ajudar a protagonista, na última edição. A ausência do personagem por quase 5 edições evidencia uma virada de narrativa do mangá, onde o antigo vilão, Senzo, se torna um dos novos mocinhos. Plot de revirar o estômago. Mas voltaremos a isso em instantes, antes, ainda preciso falar da derrota que Tsukiro sofre para Intetsu. Após isso aconotecer, Tsukiro passa por uma transformação digna de um Arnold Schwarzenegger, transmutando-se do visual de um bárbaro, como um Conan, para o de um robô de jaqueta e óculos escuros, como um Exterminador do Futuro.

Tsukiro, na sua versão “Conan” e, depois, a versão 2.0, estilo “Exterminador do Futuro”, com direito a óculos escuros e a dirigir um caminhão.

Tsukiro e sua relação com Senzo Kaieda é a coisa que mais me incomoda em Mai. Ele passa daquele monstro irracional preso numa espécie de caverna, para um guarda costas respeitável com um braço mecânico (sim! tinha esquecido esse detalhe! Ele ganha um braço robô, após ser derrotado por Intetsu). E num ato de heroísmo altruísta, Tsukiro sacrifica-se para salvar Senzo, que sofreria um golpe mortal.

Nesse ponto, em uma ridícula e inesperada cena, Senzo, o homem que deixava Tsukiro preso dentro de um cofre no submundo de sua agência, chora e revela que é seu pai e que o Pentágono fez experiências com ele, tornando-o neste monstro medonho. Sim! É uma coisa solta e despropositada, exatamente deste jeito.

A morte novelesca de Tsukiro. Desculpe pelo spoiler, mas eu lhe fiz um favor.

Antes disso acontecer, o próprio Senzo Kaieda já havia passado por uma transformação, como comentei anteriormente. Percebendo a importância de Mai para a Aliança da Sabedoria, ele decide ficar com a custódia da garota e não entregá-la para a organização criminosa mundial. Até aí, vá lá! Ele até poderia mostrar-se com um velho simpático para tentar conquistar a simpatia de Mai e usá-la para seus próprios propósitos, mas acaba revelando-se, de verdade, um velho sábio e bondoso! É de doer! E isso, depois de ele ter tentado partir o pai da garota bem ao meio com uma katana, em frente a traumatizada garota.

A Aliança da Sabedoria é liderada por Shogen Ryu, um vilão de tapa-olho para conseguir se tornar uma versão ainda mais tosca do Imperador Ming, de Flash Gordon.

Kazuya Kudo parece sofrer de um mal onde ele pensa estar sendo extremamente shakespeariano, adulto e verossímil, quando na verdade não consegue transparecer mais do que um adolescente de doze anos que tenta impressionar com sua rasa percepção dos problemas do mundo. É assim que sua Aliança da Sabedoria lida, em suas intrigas políticas e econômicas. Shogen Ryu, o grande líder da Agência da Sabedoria, é uma versão genérica do Imperador Ming, com direito a um tapa-olho para parecer mais mau. Em certo momento ele diz: “ah! Então o Japão não vai me dar a Mai? Então eu decreto um embargo comercial do mundo contra o Japão”. E acontece. Simples assim.

Para não me alongar mais do que isso, Mai é um bom exercício de desenho de Ryoichi Ikegami e um despropósito narrativo de Kazuya Kudo. Eu não compraria, mas estou vendendo. Sério! Aqui tá o link pra vocês! É a chance para vocês lerem e afirmarem, com propriedade, que estou errado.

Sou desenhista, criador do Máscara de Ferro e autor do quadrinhos Foices & Facões. Sou formado em história e gerente da livraria Quinta Capa Quadrinhos