A vida de Miles Elliot não anda fácil. Em crise no casamento, por conta de uma indefinição sobre ter filhos, enfrenta ainda uma estagnação no trabalho. Cansado, sem esboçar qualquer reação, Miles se encontra num beco sem saída. Até que um amigo o indica um spa, capaz de resolver todos os seus problemas. Como se saísse de lá… Outra pessoa. Mas para alguém que atravessa o pior momento da vida, mesmo as oportunidades de recomeço escondem terríveis armadilhas.
“Cara X Cara”, série da Netflix estrelada por Paul Rudd e Aisling Bea, esmiuça a natureza oculta em cada um de nós, feita de incoerências, verdades e questões mal resolvidas, usando como recurso a figura do duplo. O spa, como logo sabemos no primeiro episódio, é na verdade uma espécie de clínica clandestina de clonagem, que reescreve o DNA de seus clientes, aprimorando talentos e aptidões, matando, ao fim do processo, o corpo “original”. Entretanto, o procedimento falha com Miles, que acorda enterrado no meio de uma floresta. A muito custo, retorna para casa, deparando-se com outro eu, que ocupava sua vida como se nada tivesse ocorrido.
Feito os esclarecimentos, Miles e Miles precisam lidar da forma mais prática possível com uma situação irreal: a existência de duas pessoas que, a priori, seriam apenas uma. Timothy Greenberg, criador e roteirista da série, é engenhoso no desenvolvimento do plot, apresentando muitas vezes o mesmo acontecimento sob o ângulo de cada um, demarcando assim as diferenças que se impõem entre ambos. Afinal, embora Miles e Miles compartilhem nome, endereço, profissão, memórias e genética, não poderiam ser mais diferentes.
O novo Miles, embora tenha consciência de seu próprio passado, é aberto para a vida, quase infantil ao lidar com as sensações mais banais (como o vento a bater no rosto), criativo e disposto a deixar todos à sua volta confortáveis. O velho Miles, por outro lado, mesmo atravessando uma experiência sui generis, não parece sacudido pelo fenômeno. Ao contrário: agarra-se à apatia, sem perceber a oportunidade única de renascer em seu próprio corpo.
É por essas e outras que “entrega” para o clone sua função na agência de publicidade onde trabalha, sem suspeitar que ele arrebataria sua equipe com uma campanha vencedora, despertando ciúmes no Miles original e deixando-o ainda mais inseguro. O elenco enxuto permite que todos os personagens, de alguma forma, contribuam para o andamento da trama, que avança e recua conforme novas implicações surjam no caminho.
É o que ocorre, por exemplo, quando Kate, esposa do velho Miles, finalmente descobre a existência do outro. Longe de tornar a situação um mero gancho pro hilário, abre, outrossim, espaço pra abordar com franqueza (e serenidade) os problemas que o seu casamento atravessa, evidenciando expectativas e frustrações próprias de uma vida a dois que parece ter chegado ao fim. Se o velho Miles está esgotado e não demonstra reação quanto as demandas do casal, poderia o novo Miles ser a solução para tudo?
https://www.youtube.com/watch?v=7JHbybyBF2k
A tradição do duplo, que remete a nomes como Dostoiévski e Saramago, aposta, via de regra, na introdução do outro pela visão do protagonista, perdido entre a paranoia e o medo; paralisado pelo sucesso que a cópia alcança sem esforço. Em “Cara X Cara”, Greenberg areja o conceito, ao trabalhar novas camadas no novo Miles, sugerindo alguém complexo, contraditório.
Ademais, as sequências remontadas pela perspectiva que cada Miles tem dos eventos em curso atribui uma humanidade que sensibiliza pelo amor que revela e o amor que esconde. E isso está além de qualquer dilema acessório.
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