Chegamos à segunda edição da coluna Segunda Poética, que integra nosso Janeiro Literário. O convidado da vez é Adriano Lobão. Falamos um pouco de sua trajetória, seus livros e apresentamos uma amostra generosa de seu brilhante trabalho.
Os tempos e a forma é o mais recente lançamento de Adriano e reúne num único volume cinco livros de poemas do escritor piauiense: Uns poemas (1999), Entrega a própria lança na rude batalha em que morra (2005), Yone de Safo (2007), As cinzas as palavras (2009) e Entre áridos anseios dispersos (2017), além de poemas dispersos publicados entre 1997 e 1998.
Seu primeiro livro, Uns poemas, foi publicado em 1999, pela Prefeitura de Teresina, através da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, como premiação pelo Concurso Novos Autores, Prêmio Cidade de Teresina, 1998. Entrega a própria lança na rude batalha em que morra foi publicado pela Fundação Cultural do Piauí, Fundac, em 2005, num volume que incluía também os livros Balé de pedras, de Wanderson Lima, e Fractais semióticos, de Demetrios Galvão. Pouco depois, foi publicado separadamente, em edição artesanal, de restrita circulação, contando com cerca de 100 exemplares apenas.
Yone de Safo foi premiado, assim como o livro anterior, em concurso literário promovido pela Fundac, mas o Governo do Estado do Piauí não publicou as obras vencedoras daquele ano de 2006, sendo que o compromisso público firmado via edital terminou por cair no esquecimento ao longo das sucessivas gestões do governo e da Fundação Cultural do Piauí.
O livro seguinte, As cinzas as palavras, foi publicado em duas edições. A primeira, em 2009, apresentando somente 70 exemplares, e uma segunda, em 2014, contando com tiragem bem mais ampla e obtendo uma circulação bem menos restrita.
Para Os tempos e a forma, o volume Ave Eva, que havia sido publicado somente em e-book, em 2011, foi reestruturado e passou a compor, juntamente com diversos poemas inéditos, a obra Entre áridos anseios dispersos, constituindo assim sua forma definitiva.
Adriano Lobão Aragão nasceu no ano de 1977, em Teresina, Piauí. Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Piauí. Professor de língua portuguesa do Instituto Federal do Piauí. Além de poeta, o autor também publicou, em 2012, o romance Os intrépidos andarilhos e outras margens. Atualmente, é um dos editores da revista eletrônica dEsEnrEdoS.
Dentre seus próximos projetos literários, encontra-se o DESTINERÁRIO, que consiste numa jornada envolvendo poesia e fotografias que tematizam diversas cidades nordestinas. Cada poema, desenvolvido na própria cidade que tematiza, é acompanhado de fotografia, num trabalho de criação e execução que levou mais de três anos para ser desenvolvido. Dentre as cidades visitadas, fotografadas e que serviram de inspiração para cada um dos poemas, temos: Cocal, Campo Maior, Cocal de Telha, Cocal dos Alves, Caraúbas, Caxingó, Quixadá, Bom Princípio, Fortim, São João da Fronteira, Murici dos Portelas, Buriti dos Lopes, Icapuí, Inhuma, Elesbão Veloso, Picos, Uruçuí, Domingos Mourão, Piracuruca, Bom Jesus, Cajueiro da Praia, Nossa Senhora de Nazaré, São José do Divino, Ilha Grande de Santa Isabel, Pedro II, Brasileira, Capitão de Campos, Barro Duro, São Miguel da Baixa Grande, São João do Arraial, Paramoti, Itapipoca, Aracati, Esperantina, Araioses, Batalha, Alto Longá, União, Ubajara, Quixeramobim, Fortaleza, Viçosa do Ceará, Aracaju, Maceió, Boqueirão, São Pedro do Piauí, Barroquinha, Cahval, Piripiri, Nazária, Timon, Santo Antônio dos Milagres, Curralinhos, Pau D’Arco, Caxias, Floriano, Demerval Lobão, Coivaras, Jatobá do Piauí, Altos, São Benedito, Acaraú, Lagoa do Piauí, Oeiras e Cabeceiras do Piauí, entre outras. Além de cidades estruturalmente desenvolvidas, como Fortaleza, Maceió e Aracaju, o projeto voltou-se principalmente para pequenas cidades mais interioranas, muitas delas de ambientação tipicamente rural. Nesse sentido, procurou-se através da arte da poesia e da fotografia colaborar com a autoestima, valorização da cultural local e dialogar com os aspectos geográficos, históricos e humanos das localidades retratadas em imagem e poesia. O projeto encontra-se em captação de recursos para publicação através do Catarse (www.catarse.me/destinerario).
OS PASSAGEIROS DAS ÁGUAS
[Adriano Lobão Aragão]
[as aves que aqui gorjeiam]
ou a ausência de seu canto
onde canta a precisão
há pobres mortos adultos
outros nem crescerão
onde canta a precisão
como suor, cheiro do corpo
como um peixe tem seu cheiro
como cheira um peixe morto
onde canta a precisão
a morte na própria vida
marca sua jurisdição
onde canta a precisão
como o suor de um pescador
como o cheiro desse rio
onde a fome vem cantar
***
[a voz das águas]
ou a conversa de um visitante
com um cantador fluvial
meu prezado visitante
deixa agora eu te explicar
esse aqui é o Parnaíba
não há outro melhor por cá
desse lado é Piauí
Maranhão é laculá
se quiser comprovação
vosmecê tem de nadar
A VIDA DESSAS ÁGUAS
É A VIDA DESSA GENTE.
O QUE VIVE NO RIO
VIVE VIVO EM VOSSA MENTE?
o que vive em nossa mente
não sei bem como explicar
mas o que pensa lá o peixe
posso até adivinhar
é que sempre é pescado
o que não sabe pescar
e não sendo um nem outro
escapa aqui a cantar
A VIDA DESSAS ÁGUAS
É A VIDA DESSA GENTE.
O QUE VIVE NO RIO
VIVE VIVO EM VOSSA MENTE?
não precisa insistir
no que não sei responder
o que vive numa mente
pode nem vir a nascer
quando a fome é muito grande
e não se tem o de comer
e pra ficar pensando em mente
ou já tá de bucho cheio
ou não tem o que fazer
A VIDA DESSA GENTE
É A PRATA DESSES PEIXES.
VEM DO BRILHO SOLAR NO RIO
A LUMINOSIDADE DESSES FEIXES?
da prata não sei dizer
nem de qualquer outro metal
povo pobre não é de ter
ouro, cobre, coisa e tal
nem o peixe há de saber
o que vem do sol ou vem do sal
mas garanto pra vosmecê
que esse brilho é natural
A VIDA DESSA GENTE
É A PRATA DESSES PEIXES.
VEM DO BRILHO SOLAR NO RIO
A LUMINOSIDADE DESSES FEIXES?
difícil de responder
o que de novo pergunta
brilha o peixe brilha o sol
brilha a faca numa luta
e na luta de todo dia
é a rede que o homem usa
e um peixe não a corta
nem tendo o brilho do sol
nem tendo o brilho da lua
SEJA PESCADOR, OPERÁRIO OU PATRÃO
TODO MUNDO SENTE FOME.
DÁ O RIO E SUAS ÁGUAS
A SOBREVIVÊNCIA DO HOMEM?
todo dia se combate
se combate toda hora
usa um homem uma rede
uma arma ou uma esmola
pra se combater a fome
a vida é a melhor escola
sem aprender a lição
nem estaria aqui agora
SEJA PESCADOR, OPERÁRIO OU PATRÃO
TODO MUNDO SENTE FOME.
DÁ O RIO E SUAS ÁGUAS
A SOBREVIVÊNCIA DO HOMEM?
para saber do homem
é por isso que repete
pra continuar vivendo
numa canoa se mete
nem sempre o peixe vem
às vezes desaparece
mesmo assim o homem luta
ou ele persegue o peixe
ou a fome é que persegue
***
[o que mais junto se vai]
ou o que esse rio traz ou leva em seu ventre
um rio não corre sozinho
leva o que pode encontrar
seja peixe, mato ou lixo
seja um homem ao afogar
sua comunidade móvel
de vida e morte se faz
não há como distinguir
o que mais junto se vai
são pedaços de pau e folha
enganchos pra linha de mão
ou uma rede que se lança
e só puxa podridão
esse rio nos traz a vida
no percurso da existência
certos peixes, certa vida
na casa em que há mais carência
esse rio nos traz a vida
no passar e no existir
como a canoa se desgarra
pra pescar um surubim
esse rio recebeu nomes
diversos em outros tempos
recebeu também inúmeros
exploradores no ventre
esse rio leva seus nomes
leva gente e leva tempo
pra saber o que possui
ou dele o que nós temos
de sua serena canção
de água, movimento e medo
quando um náufrago afoga
nessa água seu desespero
às vezes em troca leva
um barco, quem sabe a vida
mas continua o itinerário
no que perde a autonomia
foi no ano de mil quinhentos
e cinquenta e quatro, antes
de naufragar que Luís
de Melo chegou ao rio grande
encontra-se esse rio grande
quando chega-se ao limite
da água e toda imensidão
que apenas ao mar transmite
percorrendo essas águas
na via de seu naufragar
Nicolau de Resende entre
índios encontrou um lar
onde se chega e se vai
sem sossego mas sem mágoa
onde existe vida e morte
só existe lar onde há água
e Pero Coelho de Sousa
veio lá do Ceará
nos limites de suas terras
suas águas marcar
Francisco José canoeiro
na luta de seu caminho
afogou-se com a rede
na sobrevivência do ofício
no fim do dia de trabalho
outro Francisco foi morto
a mão covarde atirou
no homem e no rio seu corpo
não é caixão que se ganhe
nem chegará o mar ganhar
não reclamou enquanto vivo
nem morto reclamará
morreu esse homem na luta
diária contra seu destino
como tantos morrem logo
sem nem saber o motivo
este rio marcado passa
rastejando como um corte
sabendo o rumo da vida
o mesmo rumo da morte
Chiquinho, menino esperto
e ativo, não completou
travessia pro Maranhão
o rio seu nado levou
perdeu sua casa e uma filha
tudo que tinha seu Chico
levado à força nas águas
da enchente de 85
***
[as aves que aqui gorjeiam]
ou a presença de seu canto
não permita Deus que eu morra
de sede ou de fome
pois é dessa água que bebo
e desse peixe se come
mas se tiver chegado a hora
se estiver chegado o dia
que me levem essas águas
de onde extraímos vida
não permita Deus que eu morra
sem um peixe pra pescar
sem ver que em cada filho
a vida teima em continuar
e estes terão outros filhos
para outros filhos gerar
mesmo morrendo cedo
nosso rio chega ao mar
não permita Deus que eu morra
sem ver meu filho pescar
ou aprender algum ofício
que me deixe descansar
um finado não descansa
tendo filho pra cuidar
não é abandonado à vida
que um filho quero deixar
há fome na minha casa
entre dois filhos e a esposa
sem um peixe em minha rede
não permita Deus que eu morra
***
[a voz das águas]
ou a conversa de um cantador fluvial
com um visitante
NÃO TEME A MORTE
QUEM A VIVE DIARIAMENTE
COM SUA PRESENÇA CONSTANTE
QUE DE LONGE SE SENTE?
o que vou dizer agora
pode até decepcionar
não se pode a morte temer
quando se sai para pescar
nem é por essa maneira
que se percebe ela chegar
mas quando a vida pulsa
querendo se alimentar
NÃO TEME A MORTE
QUEM A VIVE DIARIAMENTE
COM SUA PRESENÇA CONSTANTE
QUE DE LONGE SE SENTE?
o que se sente não é morte
o que se sente é a vida
viva em cada pessoa
como uma barriga vazia
viva em cada caminho
como um cego se guia
se é a morte o que traz
o que sente é vida ainda
MEU PREZADO COMPANHEIRO
AINDA TENHO UM QUESTIONAR
POR FAVOR NÃO SE IRRITE
COM ESSE MEU PERGUNTAR:
NÃO TEME A MORTE
QUEM A VIVE DIARIAMENTE
COM SUA PRESENÇA CONSTANTE
QUE DE LONGE SE SENTE?
***
[o que a musa antiga canta]
ou as armas desse pobre pescador
as armas desse pobre pescador
mais que uma rede, uma canoa e coragem
são essas marcas que algum peixe deixou
na rede e na alma desse rio sem margem
um jeito de conviver com a dor
e o olhar de quem vê mais que uma miragem
a manha e força de um homem que teve
o equilíbrio certo ao puxar a rede
aquele rio não era
sequer um cão
nem um feixe
que prende um peixe
à sobrevivência do homem
e também as memórias esquecidas
que de vida e de morte se refazem
por essas águas passam consumidas
por esses cambos de peixe que trazem
como marca mais forte que as feridas
do tempo ou os calos que essas redes fazem
joga sua rede mesmo se cansasse
como cada artista apreende sua arte
aquele rio nem era a morte
nem a vida
nem o desengano
de uma rede que volta vazia
colher o fluir leve desse caminho
o passar calmo como mão tranquila
ou qualquer outra forma de carinho
como outro trajeto jamais faria
pois todo corpo sabe seu destino
como qualquer rio seu curso caminha
como um mapa que num ventre é tatuado
como armas e barões assinalados
aquele rio não era
o rio de minha aldeia
aquele rio não é
sequer um rio
nem um caminho
onde habitam vivos e mortos
nem o espaço onde jazem
nem a força que os move
e vós, mulheres desse rio faminto
que devora enquanto é devorado
e nenhum canto espalha pelo rio
se nenhum canto se espalha a nado
se nenhum canto é canto sozinho
então cesse esse canto solitário
cesse tudo que na água se encanta
cesse tudo o que a musa antiga canta
aquele rio só nada
***
[o canto autofágico]
ou um osso na água
a fome devora minha
vida ou somente devora
meu amor de filho ou a vida
dos filhos que nem nasceram
a fome devora minha
rede peixes linha e anzóis
devora a água como o rio
devora a margem seu curso
a fome devorou meus
desejos e meus prazeres
como minha própria fome
foi por ela devorada
e devora minhas mãos
minha voz e minha carne
devora enquanto devolve-me
o que restou de meus ossos
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