A obra “O papel de parede amarelo” é de autoria de Charlotte Perkins Gilman (1960-1935) e foi publicado em 1892 pela primeira vez.
Charlotte foi um importante poetisa, romancista, filósofa, socióloga, escritora, escritora, artista, economista, editora, sufragista e palestrante.
Com sua narrativa carregada de terror psicológico, o livro é considerado como um dos precursores da literatura feminista nos Estados Unidos da América.
Em O papel de parede amarelo, a autora narra, em primeira pessoa, as angústias de uma mulher que é diagnosticada com depressão e histeria e forçada pelo marido, um médico, a se isolar em uma casa para evitar esforço físico e mental como forma de recuperação. A partir desse isolamento, a narradora vai contando sobre sua obsessão com o papel de parede que dá título à obra, demonstrando um estado de confusão mental que pode trazer diversos significados.
O conto tem inspiração na própria vida da autora que, durante seu primeiro casamento, foi também diagnosticada com depressão nervosa pelo mais renomado especialista em nervos em sua época, o dr. S. Weir Mitchell, da Filadélfia. Uma das recomendações do médico foi limitar a atividade intelectual de Charlotte, além do repouso e uma vida totalmente doméstica.
O livro foi publicado recentemente no Brasil pela editora José Olympio, numa edição que traz um ensaio da educadora americana Elaine Ryan Hedges, de 1973, e um prefácio da filósofa brasileira Márcia Tiburi.
AGORA VAMOS COMENTAR UM POUCO MAIS SOBRE A OBRA E AVISO QUE TEREMOS VÁRIOS SPOILERS. SE NÃO TIVER INTERESSE, ENCERRE A LEITURA AQUI!!!
Primeira coisa que precisamos comentar é que existem várias interpretações possíveis sobre a narrativa.
Saúde mental e machismo
A obra pode ser considerada uma crítica ao tratamento dado à saúde mental na época, principalmente em relação às mulheres, que eram comumente diagnosticadas como “histéricas”, muitas vezes apenas por fugirem aos padrões esperados em relação aos papéis de gênero. Isso pode ser considerado também ao percebermos como, durante muito tempo, a medicina dedicou pouca atenção às questões femininas, mesmo biológicas (por exemplo, apenas em 2009 os cientistas conseguiram identificar a estrutura completa e o funcionamento do clítoris!), e os tratamentos psicológicos eram direcionados a conter as expressões femininas. Considerando a história de vida da autora, não é pouco provável que seu diagnóstico médico se devesse ao seu ativo papel nas causas feministas e seu grande trabalho criativo. Inclusive em relação às proibição em escrever, que ela burla:
Assim, tomo fosfatos ou fósfitos – seja lá o que for, e tônicos e ar, e faço caminhadas e exercícios, e estou absolutamente proibida de “trabalhar” até estar bem de novo.
Pessoalmente, discordo das ideias deles.
Pessoalmente, acho que um trabalho agradável, com a empolgação e a novidade, me faria bem.
Mas o que se pode fazer?Lá vem John e tenho que guardar isto – ele odeia me ver escrevendo uma palavra que seja.
Quem diagnostica a narradora é o próprio marido:
John é médico e talvez – (eu não diria isso a vivalma, claro, mas isso aqui é um papel morto e um grande alívio para minha cabeça) – talvez essa seja uma das razões para eu não melhorar mais rápido.
Sabe, ele não acredita que eu esteja doente!
E o que é que se pode fazer?
Se um médico altamente conceituado, o próprio marido da pessoa, garante a amigos e parentes que realmente não há nada demais irreverentecom ela, só uma depressão nervosa-temporária – uma ligeira tendência histérica -, o que se há de fazer?
Meu irmão também é médico, também altamente conceituado e diz a mesma coisa.
Note-se que há uma descrença de que a autora sofra, de fato, com algum mal. Suas questões são consideradas irrelevantes pelos homens próximos a elas. É a inadequação da autora, enquanto mulher, que provoca estranhamento. Isso fica ainda mais evidentes no seguinte trecho:
John não sabe o quanto eu sofro de verdade. Ele sabe que não há razão para eu sofrer, e isso o satisfaz.
Curiosamente, a narradora faz referência ao médico que atendeu à escritora:
John diz que se eu não me recuperar mais rápido vai me mandar para Weir Mitchell no outono.
Mas não quero ir para lá de jeito nenhum. Tenho uma amiga que esteve uma vez nas mãos dele e disse que ele é igual a John e meu irmão, só que pior ainda!
Um aspecto interessante é que, no conto, a narradora faz poucas referências à existência de uma filho.
Ainda bem que Mary é boa com o bebê. Um neném tão querido!
E, no entanto, não posso ficar com ele, me deixa tão nervosa!
Além disso, essas passagens são pouco afetivas e de ordem prática. Muitas pessoas interpretam esse fato como uma indicação que a narradora, na verdade, poderia sofrer do que, hoje, chamamos depressão pós-parto.
Relacionamento abusivo e controle
Na trama, a narradora conta que é levada para uma casa alugada a fim de que possa se recuperar. O marido é descrito como alguém que tem cuidado com a esposa doente. Em vários momentos a narradora fala de atitudes controladoras do marido, atenuando as ações com a justificativa de que ele está buscando o melhor. Como, por exemplo, quando ela fala do profundo incômodo que o papel de parede provoca nela e ele diz que vai manter sob o risco de que ela implique com outras coisas se ele atender ao seu desejo.
Neste trecho:
Não gosto nada do nosso quarto. Queria um no andar de baixo, que abria para a varanda e tinha rosas por toda a janela, e umas cortinas antigas de chintz tão lindas! Mas John não me deu ouvidos.
Disse que lá havia uma janela apenas e espaço insuficiente para duas camas, e nenhum quarto ao lado onde ele pudesse ficar.
Ele é muito cuidadoso e amoroso e quase não permite que eu me mexa sem me dar uma orientação especial.
Tenho uma receita que determina o que devo fazer a cada hora do dia; ele me tira qualquer preocupação, e me sinto uma ingrata por não dar mais valor a isso.
Observa-se como a postura controladora do marido travestida de amor faz com que a narradora sinta culpa. A frase “Mas John não me deu ouvidos” é repetida em diversos momentos.
O controle é um aspecto de destaque na obra e em várias passagens a narradora diz precisar fingir para evitar as recriminações do marido:
Insisti em escrever por um tempo apesar deles; mas realmente me cansa muito – ter que fingir tanto sobre o assunto, ou então enfrentar oposição cerrada.
Mas John diz que se me sinto assim vou descuidar do meu autocontrole, então faço o maior esforço para me controlar – na frente dele, pelo menos, e isso me deixa muito cansada.
A própria impossibilidade de conversar com o marido sobre sua condição, diante da reprovação e desconsideração ao que ela diz é diversas vezes citada no texto.
Por trabalhar e ficar muito tempo fora de casa, John deixa sua irmã com a narradora, e é também descrita como alguém que faz parte desse controle.
Lá vem a irmã de John. Uma moça tão querida e tão cuidadosa comigo! Não posso deixar que me veja escrevendo.
A irmã do marido acaba por se tornar um referencial ao modelo de comportamento feminino ao qual a narradora não se encaixa:
Ela é uma perfeita e entusiasmada dona de casa, e não deseja profissão melhor que essa. Acredito realmente que ela pense que escrever foi o que me deixou doente!
Aqui, a referência à escrita como elemento de adoecimento nos faz refletir nos papéis sexuais. Os homens, sempre presentes no espaço público e as mulheres restritas ao privado, têm no ato de escrita uma quebra dessas fronteiras – logo, desempenhando de forma equivocada o papel feminino, a narradora sofre de mal psíquico.
O casamento pode ser considerado também um fator de aprisionamento. Na casa alugada, no quarto onde está o papel de parede, à cama é descrita como um móvel pregado no chão, não sendo possível movê-lo de onde está.
Isolamento, delírio e aimbolismo
Por conta do movimento de reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial, hoje sabemos o quanto o isolamento pode ser prejudicial para a saúde mental. Contudo, esse era o tratamento a que os pacientes eram submetidos. Esse isolamento fez com que a narradora passasse a dispensar cada vez mais atenção a um elemento presente em seu confinamento: o papel de parede que decora o quarto.
Nas palavras da narradora:
Nunca vi papel pior em toda minha vida.
Um daqueles tipos de desenhos bem espraiados e espalhafatosos que pecam totalmente contra a arte.
É apagado o bastante para confundir quem busca segui-lo com o olhar, marcante o bastante para causar frequente irritação e provocar o estudo, e quando você tenta acompanhar as curvas tortas e incertas durante um pequeno trecho, de repente elas se suicidam – precipitam-se em ângulos ultrajantes, destroem-se em contradições impossíveis.
A cor é repelente, quase repulsiva; um amarelo sujo, apagado, estranhamente desbotado pela luz do sol que passa devagar sobre ele.
Em alguns lugares é de um laranja insípido, mas lúgubre, em outros, de um tom sulfúrico repugnante.
A medida que avançamos, a narradora vai demonstrando cada vez mais inquietação com o papel de parede.
Ao passar horas analisando os desenhos no papel, a narradora começa a tecer interpretações que indicam muito sobre sua própria condição. Na representação do papel, a narradora passa a ver uma mulher que se arrasta por trás de um padrão que remete a grades e cabeças degoladas com olhos esbugalhados. E esta mulher – ou mulheres, como às vezes parece à narradora – fica contida à luz do dia mas, à noite, a narradora consegue perceber os movimentos que a mulher faz.
Tentar decifrar o desenho acaba dando um ânimo novo para a narradora, o que faz com que o marido pense que ela está melhorando, “apesar do papel“. Mas é justamente o papel que representa para ela um desafio intelectual, ainda que baseado em delírios. Um desafio que ela precisa decifrar antes que acabe o prazo do aluguel e ela precise ir embora.
Por vezes, a narradora dá a entender o ânimo renovado não é exatamente encarado como melhora pelo médico e sua irmã, fato que ela atribui à influência do papel sobre os dois.
A narradora começa a perceber que a mulher, à noite, se move com um objetivo:
Então, nos locais bem claros ela fica parada, e nos pontos mais escuros ela se agarra nas barras e as sacode com força.
E o tempo todo ela está tentando saltar para fora das grades.
Ela começa a achar que a mulher, durante o dia, sai do papel. E começa a ver, também, a mulher pela casa, se rastejando. A partir disso, ela conta sobre a mulher e sobre si.
Vejo-a naquela longa estrada sob as árvores, arrastando-se, e quando vem uma carruagem ela se esconde debaixo dos pés de amora preta.
Não a culpo nem um pouco. Deve ser muito humilhante ser apanhada rastejando a luz do dia.
Sempre tranco a porta quando me arrasto durante o dia. Não posso fazer isso à noite, porque sei que John desconfiaria de algo imediatamente.
No último dia, a narradora decide ajudar a mulher que sacode as grades. Para isso, ela começa a arrancar o papel de parede, mas não consegue terminar a tarefa nas partes mais altas. Pela manhã, Jennie, a irmã se John, se assusta e tenta tirá-la de lá, porém ela consegue fazer com que a outra permita que ele fique sozinha. Ela, então, se tranca no quarto.
E a narradora passa então a se confundir com as mulheres no papel. Sim, ela entende serem várias mulheres que foram libertadas pela parte do papel que ela arrancou da parede e elas estão fora da casa rastejando. A autora passa a se preocupar com a possibilidade de ter que ir pra fora, onde não é amarelo, e de que ela precise voltar para o que resta do papel à noite.
Que é a constatação que ela faz ao marido, quando ele chega e se depara com a cena.
“Consegui sair, até que enfim”, eu disse, “apesar de você e de Jane, arranquei quase todo o papel, assim não podem me prender lá de novo!”
O papel, simbolicamente, representa o aprisionamento da narradora. Não só da autora, mas das mulheres. É essa a percepção que ela traz ao primeiro visualizar uma mulher e depois perceber que são várias figuras presas nas grades. O que representa o papel? O casamento? A maternidade? A pressão social por um modelo de comportamento?
O mais interessante da obra é que os elementos que a autora traz fazem com que possamos interpretar de várias formas, como já foi dito no início deste texto. Cada um tem percepções distintas, nota detalhes que não foram observados por outras pessoas e a leitura, para além da “diversão” do momento provoca em nós muita reflexão. É um clássico que vale muito a leitura. Divirtam-se, angustiem-se, surpreendam-se!
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