Faz alguns meses que escrevi esse texto, mas só agora pude lançá-lo, já que finalmente chegou o Disney Plus no Brasil. Não mudei tanta coisa como pensei que mudaria ao assisti-lo novamente: essa é minha crítica sobre Mulan, espero que gostem.
Enquanto assistia, comecei a me perguntar se todo esse tempo gasto e anotações mentais teriam alguma serventia.
Nos últimos anos, a Walt Disney Pictures embarcou em uma jornada de “redescoberta”, renovando uma série de filmes animados de seu imenso catálogo para serem refeitos em live action. O sucesso de Malévola (2014), Cinderela (2015) e O Livro da Selva (2016) provou que o público iria lotar as salas dos cinemas se a Disney lhes desse uma nova maneira de experimentar esses clássicos.
Foi também uma maneira deliciosa de atualizar os filmes mais antigos de sua biblioteca, alguns dos quais podem ser muito lentos ou estruturados de maneira muito diferente para a sensibilidade de um público infantil moderno. Ao mesmo tempo, esses filmes – Malévola de Robert Stromberg em particular – exploraram essas velhas narrativas de uma forma diferente que as tornaram mais vivas e cheias de nuances que sua versão animada original.
Infelizmente, o sucesso inicial da Disney no ramo do live action parece que não vai durar. Onde Malévola foi ousado, A Bela e a Fera e Aladdin parecem banais e desnecessários. Isso é especialmente verdadeiro devido à idade de vocês leitores, fiquem atentos: A Bela Adormecida, cuja versão animada original foi lançada em 1959, precisava ser atualizada na sua versão live action, mas o sentimento era que eu estava assistindo a um filme que saiu dos anos 90. Assistam quaisquer romances da década de 1990 e assistam A Bela Adormecida em live action novamente.
O ápice dessas produções desnecessárias é, sem dúvida, “O Rei Leão” (2019), um remake quase igual ao original de 1994, apenas com animais CGI que não conseguem se emocionar durante todo o filme. É uma das maiores decepções da minha vida no cinema.
Pois bem, depois de falar tudo isso, precisamos fazer o questionamento, Mulan é mais um remake de um filme animado dos anos 90 que vale a pena assistir sua versão live action?
De uma forma bem generalizada, a resposta é “não”, mas é mais uma mistura de sentimentos por todos outros remakes live action que assisti. Certamente há potencial aqui para algo melhor, mas uma série de elementos impede que tenha sucesso com o público brasileiro, já que o público americano odiou (falarei sobre isso mais abaixo).
Não se pode necessariamente culpar a diretora Niki Caro pela falta de sabor e imagens interessantes em Mulan, já que o conceito principal da produção é falho. O filme faz o possível para ser mais fundamentado do que seu material original. Niki Caro tenta fazer isso removendo os aspectos “mais infantis” do original, renunciando a quaisquer números musicais e dispensando personagens como Mushu, o companheiro dragão de Mulan dublado por Eddie Murphy.
Há também um foco maior em sequências de ação influenciadas pelo famoso gênero literário chinês wuxia. No começo de “Mulan”, pode-se ver o apelo de fazer essas mudanças: torna o filme mais sério e resolve o problema de ser muito parecido com o original.
Infelizmente, o que todas essas mudanças fazem é tornar o produto final ainda mais esquecível. Sem os apelos musicais – um dos grandes lances das animações da Disney, o filme luta para se manter interessante. Pessoalmente, a sensação foi que os personagens estão apenas seguindo os movimentos até que a próxima cena de ação comece.
Embora a atriz principal Liu Yifei seja suficientemente capaz, o roteiro muitas vezes a diminui. A Mulan de Liu Yifei é uma personagem confusa, cujas motivações são tão misteriosas quanto, porque os cineastas decidiram transformá-la em uma super-heroína.
Para facilitar as cenas de wuxia, Mulan recebeu o poder especial de controlar o “chi”, o que lhe dá a habilidade de sair voando por cordinhas mais que o resto da humanidade. Esse acréscimo, no entanto, compromete a integridade de seu próprio caráter ao apresentá-la automaticamente como “melhor” do que seus colegas. Assim, o caráter instável e inteligente do filme original é posto de lado em favor de alguém cujas habilidades naturais sempre foram superiores.
Que escolha infeliz de narrativa.
O que é ainda mais lamentável é o fato de o remake deixar a base do roteiro original intacta e as áreas temáticas que precisavam desesperadamente de uma renovação ficarem quase completamente em segundo plano. O filme animado tinha uma moral feminista sólida, embora simplista. Se o objetivo do novo filme era realmente atualizar o original, uma mensagem mais complexa faria sentido. No entanto, o filme em si não critica a estrutura de poder patriarcal da China Imperial.
O principal vilão do filme é Bori Khan (Jason Scott Lee), um guerreiro invasor. No entanto, ele é a única pessoa no filme a dá poder real a uma mulher como vingança pela morte de seu pai pelo imperador da China, interpretado por Jet Li (lá no fundo do meu coração, eu só assisti esse filme porque eu sou doente pelo Jet Li desde Fong Sai-yuk, 1993). Enquanto isso, o imperador recruta homens à força para a guerra e não permite que mulheres sirvam em suas forças.
Em nenhum momento Mulan sugere a qualquer personagem do filme que devam ser feitas mudanças na forma como a sociedade funciona, mesmo quando ela está na frente do imperador. Em vez disso, no final do filme, ela se junta à Guarda do Imperador, reforçando o fato de que as mulheres têm que trabalhar duas vezes mais para obter o mesmo reconhecimento que os homens e, mesmo assim, acabam perpetuando as mesmas velhas injustiças. O filme nunca enfrenta essa dicotomia. Parece que teve medo.
Além disso, o filme não faz nenhuma crítica à China. O imperador é visto como uma figura divina e suas declarações de guerra contra Bori Khan justas e necessárias. Neste filme, a China pode ter alguns problemas políticos difíceis, mas não deixa de ser um ótimo lugar, onde as minorias oprimidas podem até ter a chance de mudá-la para melhor. E isso é irreal na fantasia e na realidade.
Não se pode deixar de considerar o quão perigoso esse tipo de mensagem pode ser. A República Popular da China é um estado hipervigilante, que se tornou cada vez mais poderoso na era da internet e das mídias sociais, que o governo controla totalmente. Sujeitou mais de um milhão de muçulmanos a negar suas crenças para que se tornassem cidadãos chineses, a política de apenas um filho ainda é desumana para os mais pobres, eles separam as crianças de seus pais sem problema algum e ainda tem o problema de extração de órgãos. A China vai dominar o mundo, mas essas coisas internas são vergonhosas.
Muitas partes de “Mulan” foram filmadas em Xinjiang, onde os mulçamos citados acima estão detidos. A China também atacou e prendeu ativistas pró-democracia em Hong Kong, gerando os maiores protestos da história de Hong Kong.
Para piorar ainda mais, a atriz Liu Yifei declarou oficialmente seu apoio ao continente contra os ativistas pró-democracia de Hong Kong. A hashtag #BoycottMulan foi tendência mundial no Twitter. Os ativistas estavam pedindo boicote total ao filme na China e sua compra na plataforma da Disney.
Então, onde isso nos deixa? Pode-se comparar o nacionalismo chinês do filme aos filmes americanos chauvinistas de diretores como Michael Bay. Eles são espetaculares e ridículos de maneiras semelhantes, mas “Mulan” é ainda mais por seu progressismo simulado.
“Mulan” está disponível no Disney Plus.
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