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Lispector, Clarice: A Inquietação Permanente

Se viva fosse, Clarice Lispector estaria completando hoje 98 anos. Uma das autoras mais citadas na internet por textos que não seus, ganhou hoje um doodle do Google, ou seja, um daqueles desenhos especiais na página principal do site celebrando a data.

A propósito da efeméride, a colega Laís Modelli escreveu uma matéria fantástica veiculada no UOL e que indico como leitura obrigatória neste dia em que celebramos uma figura enigmática e poderosa de nossa literatura, que nos legou obras fundamentais. Reproduzo parcialmente seu texto, que trespassa a análise da obra pela força do mito criado em torno de Clarice. Segue abaixo:

Poderia ser a história de uma de suas protagonistas, mas este foi o seu próprio final: um dia antes de completar 57 anos, morreu Clarice Lispector, no dia 9 de dezembro de 1977, em decorrência de um câncer de ovário.

Como despedida do público e da vida, a escritora publicou seu último romance, “A Hora da Estrela“, dois meses antes de morte. Clarice não chegou a ver que este se tornou o mais conhecido de seus romances.

“É curioso pensar que A Hora da Estrela foi a despedida de Clarice. O livro foi o seu testemunho, de vida e de morte. Ela o escreveu sabendo que sua própria estrela estava se apagando”, reflete a professora de literatura brasileira da Faculdade de Letras da USP, Yudith Rosenbaum, autora do livro Metamorfoses do mal: Uma leitura de Clarice Lispector.

A Hora da Estrela” narra a trágica história de Macabéa, uma alagoana ingênua que migra para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor.

Clarice também foi uma migrante em busca de terra nova: a escritora nasceu na Ucrânia, em 1920, mas migrou com a família para o Brasil com apenas dois anos. De origem judaica, os Lispector eram perseguidos na Europa e encontraram em Pernambuco o refúgio que precisavam.

Nesses mais de quarenta anos de morte, os escritos de Clarice têm se tornado cada vez mais conhecidos e sua obra hoje é comparada à de romancistas importantes da literatura internacional como Virginia Woolf, James Joyce e Katherine Mansfield.

Mulher, judia, migrante e separada do pai de seus dois filhos, Clarice foi um dos poucos nomes da literatura brasileira a conseguir reconhecimento ainda em vida: seu romance de estreia, Perto do coração selvagem, escrito aos 24 anos, lhe rendeu seu primeiro prêmio, o Graça Aranha.

“Clarice soube se impor. Foi jornalista, quando havia poucas mulheres nessa profissão no Rio de Janeiro dos anos 1940. Foi escritora inovadora, com narrativa bem diferente das demais que a antecederam, como Rachel de Queiroz ou Lúcia Miguel-Pereira. E seguiu com firmeza sua vocação para a literatura”, afirma a professora Nádia Battella Gotlib, autora da biografia Clarice: uma vida que se conta.

“Há que se notar que no início dos anos 2000, sua obra quase completa já havia sido toda traduzida para o inglês, francês e espanhol, com exceção, naturalmente, de suas cartas íntimas, que foram publicadas no Brasil apenas na primeira década deste século”, conta a biógrafa. A obra de Clarice está disponível em cerca de 30 idiomas, incluindo o hebraico, o tcheco, o croata, o búlgaro, o finlandês, o turco e o coreano.

Desde 2011, o Instituto Moreira Salles e o filho caçula da escritora, Paulo Gurgel Valente, tentam incluir no calendário cultural do Brasil o dia 10 de dezembro como um dia de homenagem a Clarice Lispector, chamado de A Hora de Clarice.

Apesar de ser ucraniana e de ter morado 15 anos da vida adulta no exterior por ter sido casada com um diplomata, Clarice se considerava pernambucana. Seu nome de batismo era Haia Pinkhasovna Lispector, mas adotou somente Clarice Lispector e se naturalizou brasileira. Um olhar “estrangeiro”, contudo, tem sido a principal característica usada para descrever sua obra.

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“Atribuímos essa característica independente dela ser uma estrangeira”, explica Rosenbaum. “O estrangeiro em Clarice se trata de um olhar de quem estranha o mundo até nas coisas mais familiares. A sua relação com o mundo é sempre de um ponto de vista de estranheza, de surpresa, do mesmo modo como um estrangeiro olha para um lugar novo”.

Como uma estrangeira, Gotlib explica que a escritora não se sentia pertencente e encaixada nas relações sociais usuais, como as relações familiares e amorosas, temas estes frequentes em seus livros.

“Desde seu primeiro romance, Clarice centra sua atenção no registro de labirintos da intimidade de suas personagens, atenta a detalhes patentes na vida cotidiana, como nos laços de família e em experiências mais complexas, como o amor, a paixão, o ódio, a amizade, a inveja”, explica a biógrafa.

Rosenbaum acrescenta que essa visão de estranheza do mundo se aplica também à descrição dos objetos mais banais da vida cotidiana.

“As definições de Clarice são sempre inusitadas. A sua definição de janela, por exemplo, é ‘o ar emoldurado por esquadrias'”, descreve a pesquisadora. “Clarice não usa a definição de dicionário”.

Para Gotlib, o recurso mais marcante de Clarice é a sua truculência ao retratar as relações humanas. Os conflitos no romance clariceano, segundo a biógrafa, atingem momentos de extrema tensão e as relações humanas ganham múltiplas configurações, que vão desde a ordem social, àética e até estética.

“Clarice sabe ser implacável. Se por um lado escreve crônicas leves e agradáveis de se ler, por outro lado há textos quase insuportáveis, que causam mal-estar ao leitor por mobilizarem forças talvez inconscientes, verdades até então abafadas”, analisa Gotlib. “Clarice promove um encontro nem sempre agradável com nossos próprios fantasmas”.

Segundo Rosenbaum, Clarice possui uma escrita reflexiva e problematizadora do subjetivo, frequentemente falando da angústia de ser e do desamparo do indivíduo. Mas isso não faz dela uma melancólica.

“Clarice não tem fixação pelo luto e pelo perdido. Pelo contrário, ela faz uma literatura que nos traz aprendizados para a vida. Ela descortina o mundo, mostra as coisas como elas realmente são e não como queremos que sejam. Clarice fala do vivo, e o vivo causa incômodo em Clarice”, explica Rosenbaum.

Se para alguns a obra de Clarice traz uma problematização da vida, para outros, a autora pode gerar incômodo. Para a especialista, isso ocorre porque a autora não escreveu para um grande público.

“Clarice é aquele tipo de escritor que forma seus leitores. Ela cria não somente seus personagens, mas também cria uma necessidade de o leitor passar por mudanças e aprendizados para conseguir entrar na sua obra”, afirma Rosenbaum. “O leitor de Clarice é aquele capaz de aguentar passar por uma travessia, sair da zona de conforto”.

Encerrando fazendo uma singela lista com sugestões de livros para conhecer melhor Clarice, num desafio prazeroso ao leitor.

.A Hora da Estrela – Edição Especial (editora Rocco, 224 páginas, preço sugerido R$ 44,50): Um dos maiores clássicos da literatura brasileira, A Hora Da Estrela completa 40 anos e chega às livrarias em edição comemorativa com projeto gráfico sofisticado, capa dura e recheada de textos críticos assinados por nomes de prestígio como Nadia Gotlib, Eduardo Portella, Clarisse Fukelman, o irlandês Colm Tóibín e a francesa Hélène Cixous, entre outros. A edição especial traz ainda um caderno, em papel couchê, com reproduções em fac-símile do texto original da autora, com texto de apresentação inédito da escritora, tradutora e pesquisadora Paloma Vidal.

Romance mais popular de Clarice Lispector, lançado em 1977, ano da morte da escritora, o livro expõe os dilemas criativos do escritor Rodrigo S. M. (alter-ego da própria Clarice) para narrar a história de Macabéa, uma jovem alagoana órfã, virgem, feia e solitária, criada por uma tia tirana, que a leva para o Rio de Janeiro, onde trabalha como datilógrafa e onde cumpre seu triste destino com total resignação.

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Em seu romance de despedida, Clarice põe um pouco de si nas personagens Rodrigo e Macabéa. Ele, um escritor atormentado, à espera da morte; ela, uma moça infeliz e desprezada por todos, que gosta de espantar a solidão ouvindo a Rádio Relógio e que passou a infância no Nordeste, como a própria autora.

Uma obra que se mantém instigante, inovadora e profundamente comovente há 40 anos, ganhando reimpressões sucessivas e traduções em todo o mundo. Agora, A hora Da Estrela atinge seu apogeu com esta edição que já nasce clássica e predestinada a se tornar um item de coleção.

.Todos Os Contos (editora Rocco, 656 páginas, preço sugerido R$ 69,50): Nesta coletânea, que reúne pela primeira vez todos os contos da autora num único volume, organizado pelo biógrafo Benjamin Moser, é possível conhecer Clarice por inteiro, desde os primeiros escritos, ainda na adolescência, até as últimas linhas. Essencial para estudantes e pesquisadores, para fãs de Clarice Lispector e iniciantes na obra da escritora, Todos Os Contos foi lançado nos Estados Unidos em 2015, figurando na lista de livros mais importantes do ano do jornal The New York Times e ganhou importantes prêmios, como o Pen Translation Prize, de melhor tradução.

.Clarice, (Companhia das Letras, 576 páginas, preço sugerido R$ 72,90): essa biografia, escrita pelo historiador americano Benjamin Moser, foi lançada originalmente em 2009 pela finada Cosac Naify, e deu aos brasileiros uma nova imagem de Clarice Lispector, além de contribuir para consagrar sua obra no exterior. Ao morrer, em 1977, Clarice Lispector era uma das figuras míticas do país e fascinava os brasileiros. Em nova edição pela Companhia das Letras, que ganhou um caderno com imagens inéditas da escritora, o livro busca revelar a personalidade desta mulher que certa vez escreveu sobre si mesma: “Sou tão misteriosa que não me entendo”.

O poeta Ferreira Gullar, em depoimento ao autor, declarou que ficou em choque ao conhecê-la pessoalmente e recordou: “Seus olhos amendoados e verdes, as maçãs do rosto salientes, ela parecia uma loba — uma loba fascinante”. Sua imagem envolta em mistério escapa a descrições. “Clarice”, escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade na ocasião de sua morte, “veio de um mistério, partiu para outro”. Evasiva em entrevistas e pouco afeita a falar de sua intimidade, seu nome original só foi revelado após a sua morte.

Se hoje Clarice é uma figura mítica das letras brasileiras — bela, misteriosa e brilhante —, sua vida foi recheada de percalços que a tornam mais complexa do que mostra a imagem oficial. As raízes de Clarice, nascida na Ucrânia e de origem judia, em meio a uma guerra civil, com a mãe condenada à morte, eram inconcebivelmente pobres e brutais. Segundo Moser, “ao chegar à adolescência, ela parecia haver triunfado sobre suas origens, e pelo resto da vida evitou até mesmo a mais vaga menção a elas. Temia, talvez, que ninguém compreendesse. E assim fechou a boca, como um ‘monumento’, um ‘monstro sagrado’, amarrada a uma lenda que ela sabia que sobreviveria a ela, e que ela própria, de modo relutante e irônico, abraçou”.

Ao empreender uma síntese inédita entre vida e obra de uma autora clássica, Benjamin Moser deu uma contribuição de extrema importância para a cultura brasileira.

Parnaibano, leitor inveterado, mad fer it, bonelliano, cinéfilo amador. Contato: rafaelmachado@quintacapa.com.br