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Holandeses, de André Toral, revela um Brasil de guerras e preconceitos

Holandeses é um quadrinho de André Toral que vai te conduzir por um Brasil no século XVII, na época da invasão holandesa em Pernambuco, e te mostrar muitas cores e conflitos neste país de portugueses, índios, católicos e judeus. Uma história muito mais reveladora do que pode aparentar.

Esaú e Cástor Azevedo, os irmãos gêmeos protagonistas de Holandeses.

Há muito tempo me devia a leitura de qualquer obra de André Toral. Desatento como sou, só vim ouvir falar dele no meio de uma pesquisa que eu estava fazendo sobre Brasil do século XIX como cenário para uma história em quadrinhos que eu planejava fazer. Um professor com quem conversava, me perguntou: “Você já leu Adeus, Chamigo Brasileiro, sobre a guerra do Paraguai?”

Fiquei envergonhado por não conhecer a obra, já que estou alistado e luto nas trincheiras da guerra do cenário dos quadrinhos nacionais há décadas e, até onde sei, meu professor era “apenas” um civil, que dizer, não era um leitor assíduo de gibis. Entretanto, também fiquei feliz justamente porque o professor em questão trata-se de um doutor da Universidade Federal do Piauí e isso, pra mim, foi como uma evidência de que os quadrinhos já são sim uma fonte de pesquisa respeitável e aceita e consumida dentro da academia e entre muitos orientadores há um bom tempo.

Na verdade, parte desta boa aceitação dos quadrinhos por parte da academia pode ser atribuída justamente a trabalhos como os de André Toral, pois fiquei sabendo que “Adeus Chamigo Brasileiro” foi aceito como um trabalho de pesquisa de doutorado. Quer dizer, Toral tornou-se doutor produzindo um quadrinho. Pra ficar claro, não era apenas uma pesquisa sobre quadrinhos, a tese de doutorado girava em torno da produção de um gibi. Um sonho! E assim sendo, tornou-se um precedente e uma referência para trabalhos semelhantes: é possível desenvolver uma pesquisa histórica, a nível de pós-graduação, numa narrativa que não seja a estritamente formal linguagem aceita pela academia. Só por isso, André Toral já merece todos os agradecimentos e um lugar na história das histórias em quadrinhos brasileiras.

Capa do livro Holandeses, de André Toral, publicado pela Veneta

Mas enfim, a pesquisa que eu queria realizar ainda não tomou forma e acabou que não li ainda o quadrinho de Toral sobre a guerra do Paraguai, mas achei por bem fazer esta longa introdução para contextualizar o autor, com quem fiquei com débito e foi apenas quando, passeando pelas prateleiras da Quinta Capa (minha livraria), encontrei um exemplar de Holandeses, lançado pela Veneta em linda edição capa dura, em 2017. Resolvi tirar um pouco do atraso.

André Toral, como um bom contador de histórias, conversa com o leitor em vários momentos do quadrinho.

A primeira impressão que tive foi: “é um livro curioso”. Neste sentido, porque conta sua história de uma maneira pouco comum, informal e próxima do leitor, com quadros recordatórios que não apenas contam a história, mas que conversam com a gente. É um livro curto, de pequenos capítulos, mas que contam uma longa história: a vinda dos irmãos gêmeos Esaú e Cástor de Azevedo, da Holanda para o Brasil.

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Esaú e Cástor Azevedo, irmãos gêmeos protagonistas de Holandeses.

Quando conclui a leitura, fiquei na dúvida se Esaú e Cástor existiram de verdade, porque toda a história contada por André Toral é repleta de verossimilhanças, quer dizer, de uma reconstrução da realidade baseada em muitos fatos históricos e referências bibliográficas. Há inclusive, em anexo do livro, duas cronologias: a primeira, macro, sobre o tempo em que os personagens viveram, e a segunda, micro, sobre a vida dos gêmeos dentro do recorte da história em quadrinho.

Só depois, pesquisando um pouco antes de vir escrever aqui meus apontamentos despretensiosos, descubro que o autor ressaltou, em entrevista ao Estadão, que seu livro é uma história de ficção incrustada de realidade histórica. Quer dizer, trata-se de uma brincadeira dentro da operação historiográfica de equilibrar-se no fiel da balança entre a linguagem objetiva, científica, e a linguagem subjetiva, artística ou literária, de escrita da história. Uma questão sempre pontual de se trazer à tona junto aos pesquisadores da área: escrever ficção baseado em história, ou fazer história com linguagem artística?

Mas, voltando a Holandeses. Ainda de acordo com a entrevista que Toral deu ao Estadão, seu quadrinho atravessa quatro temas principais, sendo o primeiro a crença judaica de serem os índios descendentes de judeus, o que comprovaria a profecia que versa sobre a dispersão da tribo judaica sobre os quatro cantos do mundo. Esaú parte para o Brasil não apenas com a intenção de desenvolver sua arte como pintor e ilustrador, mas para ver as profecias tornarem-se reais diante de seus olhos.

O segundo tema seria a vida pouco atrativa e sem reconhecimento artístico dentro do ateliê de Rembrandt em Amsterdã, já que os irmãos Esaú e Cástor trabalhavam com o famoso artista, ou como modelo de Jesus para as pinturas (era importante um rosto judeu como o deles para melhor representar a figura de Jesus e indícios históricos apontam que Rembrandt usou, de fato, modelos judeus para isso) ou como gravuristas ou no labor na prensa, imprimindo livros artesanalmente.

Índios que lutaram ao lado dos holandeses na invasão de Elmina não se deram bem, nem na divisão do “espólio” nem no enfrentamento da peste que sofreram durante a viagem.

Outro tópico que chama atenção e tem destaque na obra é o comércio de escravos no Atlântico Sul. O autor mostra como o engenho do comércio negreiro funcionava por uma perspectiva muito interessante, partindo da tomada da fortaleza de Elmina, pelos Holandeses, na África, onde eram aprisionados os pretos e preparados para a exportação como as peças que eram considerados ser.  A vitória em Elmina se deu a partir da utilização de uma espécie de mercenários indígenas, que teriam se juntado aos holandeses contra os portugueses, em várias ocasiões. Entretanto, Toral toma o cuidado de mostrar que os indígenas eram de várias tribos, com opiniões diferentes e que sempre oscilavam na luta entre os portugueses e os novos invasores, sempre buscando tirar proveito próprio da luta entre eles.

E, por fim, o tópico central que é a presença dos judeus-portugueses na Holanda e no Brasil. Toral diz que, apesar do título se chamar Holandeses, os irmãos Esaú e Cástor são portugueses que viviam em Amsterdã. Com isso, Toral nos traz a informação de que muitos dos holandeses que invadiram o nordeste nos anos 1600 eram, na verdade, portugueses-judeus e coloca em xeque um fato muito curioso que é um antigo preconceito religioso. Em muitas cenas vemos brasileiros e portugueses católicos chamando os judeus pelos que eles eram, como se fosse um insulto: “Judeus! Protestantes!”

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O ódio contra os judeus era enorme e os portugueses, durante todas essas décadas de invasão holandesa no nordeste, travaram lutas constantes contra eles, tomando essa região em constante clima beligerante.  Não costumavam fazer reféns, e os judeus-portugueses (ou holandeses) acabavam enforcados numa árvore qualquer, no meio das brenhas.

Holandeses tem 6 pequenos capítulos, cada um com um pouco mais de 10 páginas e, se eu preciso levantar alguma crítica seria que o quadrinho precisava ser maior. André Toral tem um grande poder de síntese e uma narrativa rápida, fazendo cortes temporais dividindo longos hiatos entre momentos diversos da vida dos dois irmãos Azevedo, mas em certos momentos sinto que precisávamos nos aprofundar mais na relação dos protagonistas, como no impasse que fez os irmãos tornarem-se inimigos, ou um pouco mais sobre a história de Kabenguelê, preto trazido de Elmina e que é um bom coadjuvante.  Resumindo: é bom! Só não é melhor porque deveria ser maior.

Sou desenhista, criador do Máscara de Ferro e autor do quadrinhos Foices & Facões. Sou formado em história e gerente da livraria Quinta Capa Quadrinhos