Com vocês, Zé Wellington:
Olá, olá!
A lista tá atrasando pra que meus quadrinhos novos não atrasem. Por falar neles, apresento a vocês Cangaço Overdrive, minha nova graphic novel(uiuiui). O quadrinho já está a venda nos links abaixo:
Mas como surgiu essa ideia maluca? Eu escrevi algumas curiosidades sobre a HQ logo abaixo.
Nordeste feelings
Ao que parece, Cangaço Overdrive é minha primeira HQ longa que vem de uma ideia original minha. Digo isso por que Quem Matou João Ninguém? foi construída a partir de uma ideia do Wagner Nogueira (que revisou o roteiro inteiro e fez diversas sugestões) e Steampunk Ladies partiu de uma ideia do Di Amorim (ainda que eu o tenha convencido a seguir caminhos diferentes).
Em 2006 ou 2007 eu trouxe o desenhista Walter Geovani para um evento em Sobral, cidade onde nasci. Como quaisquer quadrinistas que passam algumas horas conversando, em algum momento discutimos sobre fazer um quadrinho com cangaceiros. Ele me falou sobre uma passagem de Lampião, conhecido como o “rei do cangaço”, pela sua cidade, Limoeiro do Norte. Mas o Geovani sempre esteve muito ocupado no mercado americano durante esses anos e nossa conversa entrou em stand by logo depois que nos despedimos. Alguns anos depois, comecei a amadurecer a ideia de fazer uma história no mesmo naipe da animação Samurai Jack, que tem como principal plot colocar um samurai tradicional num ambiente futurista. Sem nem lembrar da conversar com o Geovani, me pareceu natural que, se eu fizesse algo assim, teria de ser com um cangaceiro. Na época compartilhei essa ideia com o desenhista Wescley Braga e ele chegou a fazer alguns estudos para o personagem principal, que já se chamava Cotiara. A ideia era fazer uma série de tirinhas, num tom mais cômico (como Samurai Jack) e que tivesse alguma continuidade (ao estilo Terry e os Piratas, do Milton Caniff). Nunca consegui parar para escrever os roteiros e o Wescley acabou iniciando uma carreira nas artes plásticas e o projeto parou por aí. Antes de decretarmos a morte dele eu já tinha escolhido o nome: Cangaço Overdrive.
Quando divulguei como se chamava minha próxima HQ e que ela seria cyberpunk, a galera DELIROU nesse nome e pensou no óbvio, que o título era uma homenagem à Monalisa Overdrive, o terceiro livro da Trilogia do Sprawl(eu falei sobre ela no texto anterior). Mas essa primeira tentativa de tirar a HQ do papel com o Wescley aconteceu há mais de dez anos e na época o único livro que conhecia do William Gibson era Neuromancer (e que eu ainda nem tinha lido). O nome Cangaço Overdrive foi inspirado pelo álbum “Seca distorcida”, da banda de hardcore cearense Jumentaparida. Substituí o “seca” por “cangaço” e “distorcida” por “overdrive”, também com uma banda de hardcore na cabeça, no caso os paulistas do Aditive, que tinham uma música que eu gostava muito chamada Câncer overdrive.
Acho que foi no final de 2015, com um edital de cultura abrindo no Governo do Estado do Ceará, que perturbei o Geovani para fazermos algo juntos. Ele foi logo dizendo que “poderia ser aquele projeto com cangaceiro que conversamos”. Ao cavucar minhas anotações procurando algo já iniciado, encontrei Cangaço Overdrive e decidi usar o plot principal. Mas, para aproveitar melhor o estilo de desenho do Geovani, não dava para ser tira e nem cômico. E assim o projeto começou se tornar um legítimo cyberpunk, com todos os seus pessimismos.
Essa é também minha primeira história longa que se passa no nordeste. Mesmo entre as curtas, agora de cabeça eu só me lembro de uma história de quatro páginas que escrevi para o Capitão Rapadura. Depois de contar uma história numa favela e de um faroeste com protagonistas femininas, esse deveria ser o meu trabalho mais fácil, por ser um tema mais próximo da minha vivência. Mas não foi bem assim. Na primeira versão da história que mandei para a Draco, o meu editor Raphael Fernandes estranhou a falta de expressões e gírias nordestinas. Eu até tentei nessa primeira versão, juro. Mas provavelmente por todo esse tempo da minha vida absorvendo quadrinhos (e outras coisas) vindas ou de outros países ou do eixo Sul-Sudeste, tudo que eu fazia parecia extremamente fake artificial. Mas nada que uma imersão em obras nordestinas não resolvesse. E aí apareceu a literatura de cordel.
Imerso nessas publicaçõezinhas, parecia (e acho que é mesmo) uma ótima ideia usar cordel na HQ. E eu decidi: a narração será em cordel, rimadinho e quase independente da HQ, mesmo que integrada a ela. Pô, no meio da HQ eu já tinha me arrependido dessa ideia, mas vá lá, a ideia parecia (parecia não, era mesmo!) muito boa. E me orgulho muito de ter virado cordelista por um ano. Penso, inclusive, em fazer mais isso. Veremos.
Duas figuras nordestinas são fortes influências para este trabalho: Chico Science e Patativa do Assaré. O primeiro veio de uma provocação do Raphael Fernandes: “escuta Nação Zumbi, vai ajudar nos diálogos”. Na real, não tinha como Nação Zumbi ajudar TANTO assim com os diálogos. Eles são de Recife e, ainda que haja muitas similaridades, cearenses e pernambucanos têm jeitos de falar bem diferentes. Mas aí lá fui eu revisitar o álbum “Da lama ao caos” e… BUM! Eu nem sabia, mas estava fazendo quase uma adaptação para quadrinhos do álbum. Toda a verve política que eu procurava tinha sido escrita pelo Chico no álbum em 1994, especialmente nas músicas Monólogo ao pé do ouvido, Banditismo por uma questão de classe, Rios, pontes e overdrives (overdrive de novo!) e Da lama ao caos. Sobrou pra minha esposa e filhas ouvir durante seis meses Nação Zumbi quase 24 horas por dia…
E sobre o segundo… Eu não sei quantos que estão lendo esse texto conhecem o Patativa. Nascido em 1909, em Assaré, cidade com pouco mais de 20.000 habitantes do sul do Ceará, o cara foi provavelmente um dos maiores poetas populares do estado. Eu conhecia bem superficialmente sua história. Cego de um olho e com uma alfabetização irregular, Patativa criava e declamava suas poesias (normalmente na métrica do cordel) de cabeça. O que eu não conhecia sobre Patativa era o seu lado político e ativista, bem visível em pedradas como Reforma agrária é assim…. Sério, procurem pelo trabalho dele, especialmente declamado de sua própria voz. E o documentário sobre ele do Rosemberg Cariry é ótimo.
Na verdade toda a cultura popular nordestina merece ser visitada constantemente. Se Cangaço Overdrive serviu pra que eu percebesse isso, espero que sirva para vocês também.
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