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Lourenço Mutarelli, Robert Crumb e a falência dos autores de quadrinhos

Foto de Rafael Roncato para a Revista da Cultura
Foto de Rafael Roncato para a Revista da Cultura

Recentemente, Lourenço Mutarelli, esse ilustre quadrinista, desconhecido por grande parte dos leitores nacionais (provavelmente conhecido por conta do filme O Cheiro do Ralo, adaptação de livro homônimo de sua autoria), deu uma entrevista para o jornal Folha de São Paulo. O motivo era a divulgação de seu mais novo romance, isso porque, ao que me consta, o autor não faz mais gibis há muitos anos.

O que mais surpreende nesta entrevista é a declaração de ser um artista falido, mesmo sendo um dos mais bem sucedidos do meio no Brasil.

Trecho da entrevista de Mutarelli à Folha de São Paulo

 

A declaração, entretanto, não é inédita. Ainda em 2015, por conta da homenagem que recebeu durante o HQ Mix, o mais importante prêmio nacional dos quadrinhos (o troféu naquele ano era um Diomedes, personagem de sua autoria), disse “eu preciso é de dinheiro. Sou um cara totalmente falido”. Ele sequer foi ao evento, provando estar confortável à margem da margem do universo de subcelebridades artísticas. “A Lucimar Mutarelli irá me representar. Obrigado”, escreveu ele à organização do HQ Mix.

Isso, evidentemente, não diminui a qualidade de seu trabalho.

Deixa eu contar uma historinha sobre Mutarelli.

Conheci seu trabalho em meados da década de 90 com a “trilogia em quatro partes” de Diomedes, um detetive tão escroto quanto cativante. Considero uma das melhoras obras que já li e a melhor hq nacional que conheço. Uma obra volumosa, densa, cheia de propostas estéticas. Propostas que poderiam incomodar os incautos, mas que agradaria aos curiosos.

 

Trilogia em 4 partes, de Mutarelli. Encadernado no catálogo da editora Devir.

 

Naqueles anos eu fazia uma feira de quadrinhos aqui no Piauí e resolvi que Mutarelli deveria ser um dos nossos convidados. Eu o procurei. Achei um e-mail. Entrei em contato, mas Lucimar, sua esposa respondeu e disse que ele não gosta de e-mails e que não poderia ir. “Coisa de artista”, pensei. Anos depois, percebi que ele já costumava não ir a esses eventos, como não foi ao HQ Mix. Posso imaginar como se sentiram o pessoal do prêmio.

Para mim, a atitude de Mutarelli de ausência no mais importante evento do gênero no Brasil, foi mais que uma birra de artista “falido”, era uma prova de que o cara havia desistido dos quadrinhos e que passara a dedicar-se a outras áreas da arte, na literatura. Escreveu vários romances, principalmente para a Companhia das Letras.

Ainda em 2015, ele disse que “o meio dos quadrinhos sempre me incomodou bastante. Os próprios quadrinistas mesmo. É um meio muito bitolado”. Ele disse que “essa mudança veio não só pela literatura, mas também pelo meio literário, que me aceitou muito bem. Isso é uma coisa que me ganha. Aceitação verdadeira, não bajulação. No meio literário eu fui muito bem acolhido, isso foi uma coisa que foi muito importante para mim”.

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Fica evidente que o autor não foi bem aceito pelo meio dos quadrinhos. O que é uma pena. Uma referência que estava, talvez, no auge de sua criatividade, migrou para novos ares. Foi rumar por outras linguagens porque fazer quadrinhos no Brasil é um tormento, o próprio autor disse que “no quadrinho, você precisa trabalhar no mínimo dez horas por dia desenhando. Escrevendo [romances], eu trabalho menos horas por dia, trabalho com muito mais prazer. E vivo também. Antes, eu não vivia, só trabalhava”. Essa é uma condição de crise para o mercado de quadrinhos no Brasil. Existe um grande esforço desse tipo de autor, o desenhista, que passa horas, às vezes dias, produzindo uma única página.

Mutarelli é um artista reconhecido e reclama abertamente da sua falta de recursos. No mercado de quadrinhos brasileiro é lugar comum encontrar referências de quadrinistas que tiveram de percorrer caminhos no design ou publicidade para poderem sobreviver.

Ser quadrinista é uma grande aventura. Mutarelli recebe seus 10% das vendas, o que é um valor significativo se você considerar que a editora pode perder até 50% com a rede de distribuição, isso significa que os 40% que sobra precisa custear todas as outras despesas envolvidas, da revisão de texto, diagramação, criação de arte à impressão.

Olhando pelo lado positivo, pelo menos Mutarelli tem uma casa editorial e não se preocupa em imprimir por conta própria e colocar o livro debaixo do braço procurando compradores, como nós, autores independentes, fazemos.

Dessa história toda, o que me corrói de dúvidas seria o meio quadrinístico parecer tão indigesto com seus artistas que causa a perda de talento tão significativo para a literatura. Seremos, realmente, tão “bitolados” a ponto de renegar a sobrevivência de um autor referência em seu próprio seio?

Para tentar responder a essa pergunta, não vou tecer longos argumentos. Vou citar apenas um autor chamado Robert Crumb, que você deve conhecer melhor que o Mutarelli, e um prefácio que escreveu para o quadrinho Desengano, de um jovem iniciante (hoje, não mais tão jovem assim) no mundo da nona arte, chamado Camilo Solano.

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“Tem uma energia nova, criativa e empolgante florescendo no Brasil atualmente (…) Esse garoto está no caminho certo. Ele é muito atento para o mundo ao seu redor, luta para descobrir seu lugar nele, e está colocando tudo isso em alguns quadros em sequência – não é tão fácil quanto parece. Na verdade, exige muito tempo e concentração, e você não enriquece fazendo isso. Se tiver uma vida modesta trabalhando só nisso, é um dos poucos sortudos. Nós vamos ter de esperar pra ver se esse Camilo terá coragem para persistir.”

“Esse tipo de ‘graphic novel’ pessoal luta para manter uma base no mundo (…) Raramente são vendidos em grande quantidade (inclusive minha própria obra, e eu sou um dos mais bem-sucedidos), e os artistas geralmente têm de fazer outros tipos de trabalhos para cobrir os gastos com alimentação, roupas e moradia. Essa é a dura realidade, camarada. Depois de alguns anos de esforço heroico, a maioria desiste. A motivação diminui (…) Pobreza cansa. Se você possui talento de verdade, com certeza encontrará oportunidades comerciais que adoraria utilizá-lo. Você pode encontrar um nicho seguro na máquina da mídia mainstream que permitirá que você realmente sustente uma família.”

“Para o Camilo, eu só digo uma coisa: Desengano é uma história em quadrinhos muito boa. Se você persistir, garanto que vai realizar trabalhos ainda melhores. Não deixe os bastardos te desanimar! Continue trabalhando!”

É impressionante o quanto um veterano internacional dos quadrinhos independentes/alternativos, desde a década de 1960, tem a dizer para um jovem autor de gibis ao mesmo tempo em que, tudo que foi dito, coincide com as lamentações de Mutarelli e poderia ser dito diretamente para ele.

Só posso concluir clamando: Mutarelli, persista! Continue trabalhando! Volte para os quadrinhos! Somos todos uns bastardos falidos.

 

Obs: Recebi uma informação de Lucas Vieira, pelo facebook, que acho importante acrescentar aqui: “O Mutarelli, em seu penúltimo livro, O Grifo de Abdera (2015), insere uma história em quadrinho no meio do texto. Este quadrinho tem uma ligação direta com a história do livro. Em entrevistas ele fala que não largou os quadrinhos completamente, mas que só desenha para si mesmo e guarda essas obras para que, quando morrer, a esposa e o filho possam vender para que não passem dificuldade”.

Sou desenhista, criador do Máscara de Ferro e autor do quadrinhos Foices & Facões. Sou formado em história e gerente da livraria Quinta Capa Quadrinhos