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A Atualidade d’ “As Portas Da Percepção”, de Aldous Huxley

Texto escrito a convite da coluna por Thiago Meneses Alves*

 

Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito”. (William Blake)

Estava voltando para o Brasil mês passado de uma viagem intercontinental que me custaram umas boas 48 horas em trânsito. Nestas oportunidades aproveito sempre para ler alguma coisa que está na minha lista há muito tempo. Ou então reler algum livro que marcou a existência.

No ano passado fiz isso com o clássico de Stephen Zweig – Brasil, país do futuro. Trata-se de um relato comovente e generoso – ingênuo, alguns diriam – sobre o nosso país. Dessa vez, a obra eleita foi As portas da percepção, do genial Aldous Huxley, autor que, junto com George Orwell e o seu 1984, escreveu uma das mais incríveis distopias do século XX: Admirável mundo novo.

Publicado pela primeira vez em 1954, As Portas da Percepção trata de uma temática que, não obstante o caráter ancestral na humanidade, ainda é muito pouco compreendida: a expansão da consciência sensorial a partir da utilização de drogas.

No caso específico de Huxley, essa experiência se deu a partir da mescalina, uma solução derivada de um cacto de onde também é retirado o peiote, utilizado em rituais de transe pelos nativos mexicanos desde muito antes da chegada de Colombo ao continente. De modo supervisionado, Huxley descreveu para uma equipe de profissionais os efeitos causados na sua percepção sensorial da realidade objetiva após ingerir a mescalina.

O que o autor sustenta é que mais do que uma abstração pura e simples, uma “fuga da realidade”, a utilização da mescalina serviu, pelo contrário, como um catalisador da percepção desta realidade. Cores, formas e perspectivas muito mais nítidas. Particularmente emblemática é a descrição de uma simples cadeira por Huxley sob efeito da substância.

As citações às Portas da Percepção é comum na cultura pop. No vídeo, A Marchinha psicótica de Dr. Soup, um dos maiores sucessos de Júpiter Maça, referência da psicodelia brasileira.

“Abrindo as portas da percepção… O tal de Aldous Huxley de cara ficou doidão?”

O que me parece importante sublinhar após essa segunda leitura do livro é: mais do que uma apologia pura e simples às drogas, a obra configura, na verdade, um tratado complexo sobre as potencialidades da percepção humana, muitas vezes aprisionada por condicionamentos morais.

Na esteira do pensamento de autores como Willian Blake e estudiosos como Carl Jung, Huxley argumenta essencialmente que a nossa percepção sensorial capta uma parcela ínfima do que, de fato, seja a realidade objetiva. Esta configuração seria fruto de um controle exercido pelo cérebro humano, que filtraria o volume de informações que a realidade objetiva emana – cores, sons, formas, matizes, etc. Em última análise, estas operações cerebrais serviriam como um mecanismo de controle da mente.

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Se exposto ao bombardeamento do manancial praticamente infinito de possibilidades sensoriais da realidade objetiva, o ser humano não seria capaz de processar funções simples que exigem a concentração, já que ficaria atordoado pela quantidade de informações. Isso fica particularmente ilustrado no relato de Huxley sobre a cadeira: o desinteresse pela função objetiva de um determinado objeto, completamente subordinada à dimensão contemplativa.

Assim, a utilização da mescalina configura o canal pelo qual o autor dribla a rigidez do filtro cerebral, extravasando as fronteiras delimitadas por este último e adentrando na paisagem mental ambientada em fábulas como Alice no País da Maravilhas (Lewis Carrol) ou a animação Fantasia (Walt Disney). Eis, portanto, a metáfora da “abertura” das portas da percepção.

Porém, Huxley deixa claro que não são apenas as drogas psicodélicas que permitem “abrir” as portas da percepção. Meditação, hipnose, entre outros procedimentos, também promoveriam o alcance de tal estágio. Além disso, alguns indivíduos nasceriam já com estas capacidades.

No fundo, a expansão de consciência sensorial descrita nas Portas corresponde à expansão de consciência num sentido mais amplo. Obviamente, se feita com a moderação, parcimônia e equilíbrio que uma experiência do gênero requer. Afinal de contas, exemplos não faltam de pessoas que extravasaram o limite – nem sempre tão claro – da expansão mental sadia via experiência psicodélica e a loucura. Syd Barrett, lenda do Pink Floyd, é um dos casos mais conhecidos na cultura pop.

 

O legado das Portas da Percepção e a sua atualidade.

Assim como as obras dos autores pertencentes à Beat Generation, o livro está diretamente associado à emergência da contracultura estadunidense em meados dos anos 60. Esta, por sua vez, está bastante associada às experimentações de todo o gênero, incluindo, claro, o uso de drogas.

Contudo, e assim como a produção da beat generation, as Portas emanam um argumento que extravasa a apologia pura e simples ao uso de substâncias psicoativas. É, sobretudo, um livro sobre a percepção expandida da realidade num sentido lato. Isto é: não apenas uma percepção expandida em termos estritamente psicodélicos, mas uma leitura que permite refletir sobre condicionamentos mais profundos, ligados às estruturas disciplinares da sociedade ocidental.

Estas, principalmente nos países ainda em vias de desenvolvimento como o Brasil, julga, condena e marginaliza os atos ocasionais de expansão da consciência diante de uma realidade condicionada. Em outras palavras, de experiências menos afinadas com as estruturas cognitivas de uma sociedade opressiva, que desincentiva o exercício da existência singular.

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O fato é que mais uma vez Huxley emplaca outra obra no rol de notáveis da literatura do século XX. Assim como o clássico Admirável mundo novo, As Portas da Percepção configura uma referência fundamental para muitos artistas. O caso mais famoso provavelmente é o de Jim Morrison, vocalista e principal compositor do grupo The Doors. A experiência mística que marcou a curta trajetória do músico muito se deve à leitura do livro.

Jim Morrison, um dos maiores nomes da história do rock, foi muito influenciado por Huxley. 

Intelectual problematizador das questões contemporâneas, Huxley tinha a consciência de que nem só de flores são feitas as experiências de expansão da consciência por meio das drogas. Tanto que escreve, em sequência às Portas, O Céu e o Inferno. Neste segundo ensaio, o inglês pondera as inevitáveis interpretações demasiado positivas ou ingênuas do primeiro livro, sublinhando as ambivalências do uso das drogas psicodélicas. Não que não tivesse alertado sobre os efeitos nefastos destas últimas já no primeiro ensaio, sobretudo para os indivíduos que possuem tendências ou estágios já desenvolvidos de esquizofrenia.

No fim, o livro deixa evidente o fato de que as drogas também são muito mais do que a concepção do senso comum propaga. Em um momento temerário do país, onde os discursos se enrijecem – e num contexto onde ainda não avançamos suficientemente numa discussão mais racional e científica sobre o uso de drogas – o livro configura uma ferramenta fundamental neste tipo de discussão.

Após o final da leitura, a interrogação persiste: seriam as drogas o promotor mais adequado para experiências de percepção expandida da realidade? Seriam as drogas o principal veículo para atravessar a fronteira do banal condicionamento sugerido pelas estruturas sociais e mentais dominantes?

A resposta que parece ficar implícita no desfecho do livro, apresentada com o misto de rigor intelectual e sensibilidade que apenas os grandes da literatura alcançam, é que é uma decisão de caráter individual. Cabe a nós mesmos escolher se e como passar pela experiência psicodélica. Obviamente, munidos do esclarecimento dos efeitos, dos prós e contras deste tipo de “viagem”.

 

*Jornalista, possui doutorado em sociologia. Apaixonado pelo Brasil e pela Itália, possui nove títulos mundiais de futebol – 5 pelo lado brasileiro e 4 pelo lado italiano. E ai de quem argumentar  o contrário. 

 

Parnaibano, leitor inveterado, mad fer it, bonelliano, cinéfilo amador. Contato: rafaelmachado@quintacapa.com.br