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Entrevista | Marcelo D’Salete e seu Angola Janga

Angola Janga: Uma História de Palmares, de Marcelo D’Salete, merece todos os elogios e prêmios que tem recebido. Trata-se de uma dessas publicações que poderíamos dizer “de fôlego”: são 430 páginas, fruto de extensa pesquisa, 11 anos de dedicação que, inclusive originou um trabalho anterior, chamado Cumbe, outras 160 páginas de gibi, “oriunda diretamente das pesquisas sobre resistência negra do Brasil colonial”. Trabalhos como esses, dessa envergadura, com esse cuidado de produção e editorial, são difíceis de aparecer no mercado brasileiro.

A editora Veneta sabia que estava diante de um material diferenciado e tratou de dar um acabamento especial: capa dura, costura, papel pólen, guarda bonitona, extras informativos com glossário e mapas com um extrato das informações que Marcelo D’Salete reuniu sobre o tráfego de escravos, cronologia das batalhas no Palmares e bibliografia.

O livro é dividido em 11 capítulos e conta história de “Angola Janga”, que significa pequena Angola e que, hoje, estaria no estado de Alagoas, mas que à época, situava-se em Pernambuco e reuniu cerca de 20 mil pessoas. Só para ter uma ideia da quantidade de gente, em Recife viviam 8 mil, em 1654, e Macaco, um dos mocambos principais da serra onde se reuniam os negros, tinha 6 mil. Uma verdadeira nação paralela, no meio do sertão nordestino.

Mas o mérito da obra de Marcelo D’Salete não é apenas o tema, é como ele constrói a narrativa, como desenvolve os personagens, brincando com a cronológica dos fatos, hora focando em um personagem, hora em outro, aprofundando suas questões e interesses, apresentando os impasses  políticos e sociais do tempo da estória.

E mesmo com toda a pesquisa histórica por trás da obra, ela continua sendo uma excelente estória (com “e”), apresentando temas fantásticos que só uma grande ficção tem direito de usar, ao tempo que esses elementos não diminuem a importância histórica que a obra traz, com seus personagens reais, como Domingos Jorge Velho, e todo o contexto problematizado e atualizado da questão racial, no Brasil.

Por tudo, nada melhor para comemorar o dia do quadrinho nacional do que batendo um papo com seu autor, que concedeu esta entrevista para o editor do site da livraria e editora Quinta Capa, Bernardo Aurélio.

Bernardo Aurélio: Sobre a infância de Domingos Jorge Velho e a relação dele com o Anguêri, pode me falar um pouco sobre como foi criar essa infância, a relação dele com o anel e o Anguêri?

Marcelo D’Salete: A proposta foi aproximar Domingos do seu entorno cultural, histórico, indígena e mestiço. É bom lembrar que há pelo menos 3 pessoas no século XVll com este nome. Pai e filho, creio que mais um neto, tinham o mesmo nome. Tudo indica que um deles, o filho, saiu de São Paulo em direção ao Nordeste.

O angueri é uma entidade indígena, espécie de espírito sem rumo que fica na mata. O anel é um símbolo que articula a relação do Domingos com seu “colega” indígena, no passado e presente. É também um objeto de disputa entre ambos.

 

O anel de Domingos Jorge Velho, em Angola Janga.

BA: Interpretei o anel como um símbolo de ganância, que foi achado no fundo de um rio e que despertava grande atenção de Domingos, além do fato que trabalhou, sobrepondo a imagem do bandeirante com um monstro da floresta. Por conta dessas coisas, inevitavelmente, fiz uma ligação com Senhor dos Anéis. Poderia comentar um pouco sobre essas semelhanças? Quer dizer, teria alguma relação?

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MS: O anel pode simbolizar diversas coisas, mas de certo modo está relacionado à ganância e aos interesses do Domingos Jorge Velho, inclusive em relação à se sobrepor à outras pessoas, incluindo o seu colega indígena. É claro que o filme O Senhor dos Anéis é uma referência interessante. Assisti há muito tempo atrás, entretanto não vejo ali uma relação direta. A disputa que existe entre os dois personagens, Domingos e o indígena, a partir do anel, lembra um pouco a narrativa do filme apenas.

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BA: Seu desenho às vezes me lembra alguma coisa naif (como no enterro de Catarina, página 22, com relação à composição plana e quase bidimensional) e alguns traços, detalhes e transações de cena me lembram Mike Mignola. Estou vendo coisas demais? Quais suas influências estéticas?

MS: Eu gosto muito de artistas que trabalham bem com o preto e branco, como José Muños, Breccia e Hugo Pratt. Mignola também é uma referência importante, com um trabalho espetacular. Eu gosto muito do trabalho dele em diversos momentos, inclusive no Hellboy. Mas, além desses, um artista que aprecio é o Flavio Colin, aqui do Brasil. Temos uma tradição singular de artistas que trabalham com esse tipo de contraste.

BA: Segundo o seu glossário, a escultura de Chibinda Ilunga representa a história de um rei que foi responsável pela expansão do reino Lunda. Mas no seu gibi, a escultura é um presente de Zona para o Governador, que parece ter ficado obcecado por ela. Que poder essa escultura representa no contexto do seu gibi?

MS: A escultura Chibinda Ilunga é elaborada pelo Ganga Zumba e pertence a ele durante uma parte da história. Depois ela trafega por diversos personagens. De certo modo ela pode ser compreendida também como o poder dessa autoridade dentro de Palmares, no caso, naquele momento, de Ganga Zumba. A escultura passa, então, para Ganga Zona no momento em que tem o acordo de paz com Cacaú. Após, ela vai parar na mão do Governador, como um sinal de acordo entre uma parte dos palmaristas e o poder colonial na antiga capitania de Pernambuco.

 

BA: Uma mosca insistente aparece ao longo de vários detalhes do gibi. Ela teria alguma representação espiritual ou mística que eu não tenha percebido?

MS: A mosca está conectada com vários personagens em diversos momentos do livro. É difícil responder isso assim, porque considero que cada um pode ter diferentes leituras desse tipo de imagem, e eu gosto de explorar isso. Mas vamos dizer assim: esse símbolo se aproxima de uma ideia de ruído e como prenúncio de um problema, de algo ruim que pode acontecer na narrativa com esses diversos personagens. É como se fosse um mal agouro.

BA: O gibi trabalha uma mística em torno dos símbolos de Ananse e Sona. Qual a importância desses e de outros simbolismos que você traz para o público geral que lê seu quadrinho?

MS: Existem alguns símbolos que aparecem no livro. Alguns deles fazem parte de um conjunto de símbolos chamados de Sona e fazem parte de um povo chamado tchokwe, do nordeste de Angola. São símbolos bem antigos e que normalmente vêm acompanhados de provérbios e ensinamentos. Achei apropriado usar esses símbolos como parte desses personagens, das crenças, dos traços culturais, no quadrinho Angola Janga. Aparecem também outros símbolos, só que aí já não são de origem angolana, mas do oeste africano, um pouco mais ao norte, que são os Adinkra. Anansi é um desses símbolos de origem Adinkra, de antigos reinos que remetem, pelo menos, ao século XVI. O adinkra assemelha-se ao Sona em alguns pontos – contam histórias e provérbios. Mas são formas gráficas bem diferentes.

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O Adinkra era utilizado na decoração de antigos reinos da região da Costa do Marfim, Gana, enquanto os tchokwe são desenhos feitos com pontos, linhas na diagonal, normalmente feitos na areia, para ensinar aos mais novos. Tudo isso é importante para compor os personagens.

BA: Seu quadrinho é uma obra histórica que não teve receio de trabalhar com a elementos místicos e discute direta e explicitamente com o contemporâneo, mostrando grandes cidades modernas no começo do último capítulo. Como foi juntar todos esses elementos? Porque foi necessário fazer assim e quais as dificuldades?

MS: O quadrinho Angola Janga é um trabalho ficcional sobre Palmares e sobre diversos personagens que haviam participado daquela batalha. É um trabalho de ficção, que se inspira em alguns documentos históricos. Mas eu sempre reforço que é um trabalho de ficção. É uma leitura muito pessoal sobre os fatos, ao redor de toda a batalha de Palmares.

Eu procurei construir personagens que conduzissem bem essa narrativa. Busquei ter liberdade pra imaginar esses personagens, mostrar seus objetivos, seus interesses, seus dramas, bem como suas perdas.

Considerei também interessante fazer conexões com esse Brasil colonial do século XVII com o Brasil atual. Temos muitas cicatrizes desse Brasil de séculos atrás, isso permanece ainda no Brasil atual. Por exemplo, a desigualdade. Esta é uma marca do Brasil colonial que permanece hoje. Desde o pós-abolição, temos uma parte das elites empenhada em fazer com que a igualdade, de fato, não aconteça para a maioria da população. Existem grupos que são beneficiados por isso. A gente precisa batalhar contra esse tipo de proposta política excludente que está muito bem explícita na atual política de governo.

 

BA: Você ganhou um Eisner, um Jabuti e um HQ MIX. Quais as expectativas e pretensões que ainda possui sobre este livro? E quais os próximos trabalhos?

MS: Angola Janga ganhou o Jabuti e o HQ Mix. O Cumbe ganhou o Eisner. Além disso, eles foram indicados para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). As obras devem chegar em escolas do Brasil todo este ano. Isso pode aproximar os livros dos leitores mais jovem, pois foram indicados para alunos do ensino médio. E, talvez, mais pra frente, podemos ter essas histórias sendo contadas também em outros formatos. Ainda não tenho como contar sobre meu próximo trabalho, mas provavelmente será um tema mais contemporâneo.

 

Sou desenhista, criador do Máscara de Ferro e autor do quadrinhos Foices & Facões. Sou formado em história e gerente da livraria Quinta Capa Quadrinhos