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Alan Moore mergulhou no terror (e horror!) de H.P. Lovecraft

Alan Moore, o mago inglês dos quadrinhos, mergulhou de cabeça na obra do escritor H.P. Lovecraft, em uma saga que durou 14 anos e 18 edições,  e levou o leitor em sua descida pela loucura, ao terror e ao horror lovecraftiano, trazendo um elemento estranho à obra do escritor americano: o sexo.

Arte de capa de Jacen Burrows para Neonomicon.
Ouso dizer que a saga que compreende Neonomico e Providence, lançados em encadernados pela editora Panini Comics, seja a obra mais difícil para o leitor que não é familiarizado com o trabalho original que Alan Moore se propõe a adentrar.

Ler Providence não foi fácil. Ao contrário, exigiu um esforço maior até mesmo do que eu julgava ser necessário para compreender um quadrinho. Lançada em 3 volumes pela editora Panini em 2017, a obra, em um primeiro momento, se tornou ilegível para mim. Não que eu não tenha terminado a edição.

Porém, a proposta de Alan Moore homenagear H.P. Lovecraft, os textos excessivos e as anotações dos personagens (chegarei nesse ponto) me deixaram perdido e fadigado ao fim da edição inicial.

Sim, percebi de cara que Alan Moore, um autor que dispensa apresentações, por ter escrito as obras mais importantes na indústria dos quadrinhos da década de 1980 pra cá, como Watchmen e V de Vingança, quis escrever sua grande homenagem ao pai do horror cósmico indo à fundo na obra de H.P. Lovecraft, fazendo com que o leitor que não conhece Lovecraft não possa nem arranhar a superfície de Providence e Neonomicon.

Dessa forma, como eu não era um leitor de Lovecraft, tendo lido apenas Horror em Red Hook, abandonei o volume 1 de Providence, e fui conhecer do que se tratavam as histórias do dito pai do horror cósmico.

Não li tudo, admito, mas li o que considero essencial para conhecer a proposta lovecraftiano: O Chamado de Cthullu, O horror em Red Hook, Dagon (minha favorita!), A música de Erich Zann, Ar Frio, O que a lua traz consigo, O modelo de Pickman e O assombro das trevas.

Pelo pouco que li, nem de longe, posso ser considerado um conhecedor da obra de Lovecraft, porém, entendo que tenho uma base para entender o seu trabalho, que trata acerca de um terror inconcebível, um terror de outro mundo, mas que se esconde neste nosso, que habitamos, povoado por deuses antigos e inomináveis para a raça humana. Além do fato que esse terror ocorrer em cidadezinhas no coração da América, levando à loucura seus protagonistas.

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O tema do terror lovecraftiano está bastante em discussão nos dias atuais, tendo a HBO adaptado LOVECRAFT COUNTRY, de Matt Ruff, em uma série bastante elogiado e que tratava de vários temas que o H.P. Lovecraft abordou, tratando também de uma América racista, como o próprio criador foi.

Imagem de H.P. Lovecraft
Howard Phillips Lovecraft, nasceu em 1890, não tendo alcançado sucesso em vida. Porém, mesmo seu texto tendo sido considerado verborrágico, misógino (não há personagens femininos em sua obra) e racista (pela forma que descreve outros povos), se tornou um dos grande influenciadores do terror no século XX e XXI.

Após me dispor a conhecer mais da obra de Lovecraft, enfim, fui terminar os 3 volumes de Providence, relendo o volume 1, e adquirindo Neonomicon, que são as primeiras histórias de Moore neste universo, tendo publicado O Pátio em 2003.

E, apesar de eu já contar uma bagagem literária sobre o tema, a leitura das obras não se tornou mais fácil, sendo até mesmo mais desafiadora. O seu personagem principal, Robert Black mantém um diário que nós, leitores, somos apresentados às suas anotações ao fim de cada capítulo. A leitura se torna mais demorada e imersiva ali. O leitor desavisado que quer cenas de terror gratuitas, pode dar meia volta, essa não é uma obra pra você, apesar de, sim, existir muito terror e cenas escabrosas em Providence e Neonomicon. Ouso dizer que é um dos quadrinhos que mais me abalou ao fim de uma leitura.

Imagem de Jacen Burrows
No caso, melhor não comentar sobre os horrores de Neonomicon ou Providence. O próprio leitor deve se deparar com essas obras.

Partindo do ponto de vista de Robert Black, um repórter ambicioso que sofreu um trauma recente, vamos aos poucos entrando, a partir da nossa realidade, no mundo criado por Lovecraft, e isso é um dos principais méritos de Alan Moore em Neonomicon e Providence. A cada etapa da jornada de Black, nos deparamos com histórias e locais que Lovecraft homenageou, fazendo um grande apanhado da sua produção literária. E mais: neste universo, Lovecraft existe e muitos conhecem sua obra.

arte de Jacen Burrows
Robert Black irá se deparar com cidadezinhas onde existem segredos antigos e personagens que escondem o segredos perturbadores.

E aqui entra outro dos pontos altos de Neonomicon e Providence. Existe o terror e o horror na obra de Moore e Lovecraft. Explico:

Normalmente, terror e horror são sinônimos. Porém, se partimos de uma pesquisa simples (vamos usar o wikipedia aqui), “Terror é geralmente descrito como o sentimento de medo e expectativa que precede a experiência horrível. Por outro lado, horror é o sentimento de repulsa que geralmente ocorre depois de algo assustador é visto, ouvido ou experimentado. É a sensação que se tem depois de chegar a uma realização terrível ou experimentar uma ocorrência profundamente desagradável. Em outras palavras, horror está mais relacionado a ficar chocado ou assustado (sendo horrorizado), enquanto o terror está mais relacionada à ansiedade ou medo.”

E os dois estão presentes em Neonomicon e Providence. Robert Black tanto sentirá o medo do inominável que está por vir, como, por exemplo, o terror na parte VII chamada O Retrato (inspirada em O modelo de Pickman); como, também, sentirá o horror de ter sofrido na pele o que essa nova realidade trás, como na cena de troca de corpos, seguido de um estupro, na parte VI, chamada de Sem Tempo, onde a presença do Neonomicon (o livro fictício de Lovecraft) se faz presente.

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Desenho de Jacen Burrows
Há momentos onde a tensão explode nas páginas de Providence.

E aqui chegamos a um ponto polêmico de Providence e Neonomicon (a obra de Moore, não o livro fictício criado por Lovecraft) . O sexo, e como ele não é tratado como uma forma de prazer, e, sim de culpa e horror, haja vista os vários estupros que encontraremos nas obras.

Os textos originais de Lovecraft são desprovidos de tensões sexuais, afirmam muitos. A ausência de personagens femininas e, por as histórias se passarem apenas com um personagem solitário, ajuda a termos essa impressão. Porém, Alan Moore vai pelo lado contrário, colocando o sexo como um dos principais elementos aqui. As cenas de estupro são pesadíssimas, não sendo recomendável para todos os públicos o trabalho que Moore faz ao escrever Providence e Neonomicon.

Arte de Jacen Burrows
Quando me veio a ideia de escrever sobre a obra de Moore e Lovecraft, já pensei logo que não colocaria nenhuma imagem de estrupo da hq, apesar de citar o tema.

CUIDADO QUE AQUI VÃO APARECER ALGUNS SPOILERS PESADOS ACERCA DE PROVIDENCE E NEONOMICON.

E quando a simbiose entre ficção e realidade em Providence não poderia ser mais clara, Alan Moore nos presentei com o seu personagem Robert Black encontrando com o próprio H.P. Lovecraft, que se torna um confidente de Black e que, com base nas histórias e anotações, criará toda a sua produção literária, em um caso onde ficção e realidade se retroalimentam, sendo Lovecraft o emissário dos tempos sombrios por vir. E, sim, é de fazer o leitor ter uma pesada dor de cabeça, principalmente pelo fato que o final de Providence nos leva ao final de Neonomicon, obra anterior de Moore no universo de Lovecraft, e que os elementos começam lá em 2003.

É um banho de água fria para o leitor que queria fechar tudo em Providence, claro, pois vai precisar ler Neonomicon para entender tudo o que Moore propôs, ou quase tudo. Porém, tendo acesso ao volume recente da Panini, toda a história que Alan Moore se propôs, fecharemos uma grande teia de referências, terror e Horror.

FIM DOS SPOILERS

Se formos parar para mergulhar, como Alan Moore fez, na obra de Lovecraft levando em consideração Providence e Neonomicon, teremos um obra pesada, de difícil leitura, inquietante e podemos, até o final da leitura, sairmos sem entendê-la. Esssa conclusão é a melhor definição para uma bela homenagem de um escritor ao material original lovecraftiano.

Arte de Jacen Burrows

Thiago de Carvalho Ribeiro. Apaixonado e colecionador de quadrinhos desde 1998. Do mangá, passando pelos comics, indo para o fumetti, se for histórias em quadrinhos boas, tem que serem lidas e debatidas.