Não deixe de conferir nosso Podcast!

Crônica de uma Saudade do Futuro

Por que a trilogia de Peter Jackson foi um evento cultural único e por que nunca mais sentiremos o mesmo impacto no cinema.

O Senhor dos Anéis
Reprodução

Houve um tempo, e parece que foi noutra era, talvez na Segunda ou Terceira Era de nossas próprias vidas, em que o mundo parou para assistir a uma guerra. Não uma guerra de noticiário, com suas cruezas assépticas e seus analistas de tela dividida, mas uma Guerra do Anel. E nós, o mundo inteiro, éramos a Sociedade.

Entre 2001 e 2003, o lançamento de cada capítulo de O Senhor dos Anéis não era uma simples estreia de cinema. Era uma peregrinação. Íamos ao cinema como quem vai a Rivendell: em busca de conselho, de beleza e de um vislumbre de esperança contra uma escuridão que parecia palpável demais no nosso próprio mundo. Lembre-se do zeitgeist. O novo milênio mal havia começado e já trazia consigo a queda de torres, o medo do desconhecido e uma cinzenta e pegajosa incerteza.

E então, Peter Jackson nos deu a Terra-média.

Não, ele não nos deu apenas fantasia. George Lucas já havia nos levado às galáxias e Spielberg, a ilhas de dinossauros. O que Jackson fez foi diferente. Ele nos deu peso. Ele nos deu a lama de Helm e o suor no rosto de Aragorn. Deu-nos a dor de Frodo, não como uma alegoria distante, mas como um fardo real, um anel de poder que todos nós, em alguma medida, sentíamos que carregávamos: a ansiedade, a responsabilidade, a pequena e quase ridícula insignificância de um indivíduo perante a esmagadora engrenagem da história.

A trilogia de O Senhor dos Anéis não foi sobre o bem contra o mal. Pff, isso é simplista, coisa de quem vê a sinopse. Foi sobre a resistência do bem quando o mal já venceu. Sauron não era uma ameaça iminente; ele era o status quo. Sua sombra já se estendia. A guerra já estava perdida em todas as planilhas de cálculo. A vitória de Mordor era a conclusão lógica.

LEIA TAMBÉM:  JEREMY RENNER FALA DA TEORIA DE QUE O GAVIÃO ARQUEIRO VAI VIRAR O RONIN!

E no entanto… dois pequenos Hobbits, movidos não por heroísmo, mas por amizade e uma teimosia absurda, decidem que a lógica pode ir para o inferno. Samwise Gamgi não carrega Frodo pela Montanha da Perdição por um ideal abstrato de “salvar o mundo”. Ele o faz porque aquele é o seu amigo. É a tradução do épico para o íntimo.

Isso, meu caro, é o que não teremos mais.

O cinema, hoje, é uma esteira de produção de universos compartilhados, uma caça frenética por propriedade intelectual que possa ser desmembrada em séries, spin-offs e participações especiais. O algoritmo dita a coragem. A aventura é calculada em trimestres fiscais. Teremos, sim, novos “conteúdos” de O Senhor dos Anéis. Serão talvez bons filmes. A Caçada por Gollum pode ser um thriller psicológico fascinante. Mas serão como visitar um parque temático construído sobre um antigo campo de batalha. Você pode admirar a paisagem, mas não sentirá o cheiro da pólvora e o desespero no ar.

A trilogia original foi um ato de fé insano. Filmar três épicos de uma vez só, no fim do mundo (Nova Zelândia), com um diretor conhecido por comédias de horror de baixo orçamento, e um elenco que misturava veteranos com desconhecidos. Foi um risco monumental, uma aposta na pura força da história. Uma aposta que hoje nenhum estúdio faria.

O que a trilogia nos ensinou não foi a lutar contra Orcs. Foi a cuidar do nosso jardim, como Sam. Foi a entender que a verdadeira coragem muitas vezes não é desembainhar a espada, mas saber quando guardá-la. Foi o aceitar que algumas feridas nunca saram completamente, como a de Frodo. E que, no fim, “há bem neste mundo, e por ele vale a pena lutar”.

LEIA TAMBÉM:  Crítica | Nova Ordem Espacial é um filme incrível de ficção científica

Essa frase, dita num cinema escuro, num mundo pós-11 de setembro, não era uma citação de filme. Era um manifesto.

O cinema pode nos dar mais elfos, mais anões e mais cenários deslumbrantes gerados por computador. Mas nunca mais nos dará aquela sensação específica. A sensação de que o destino de tudo o que importava estava sendo decidido ali, naquela tela, e que de alguma forma, nossa torcida, nosso fôlego suspenso na poltrona, fazia parte do esforço de guerra.

Nunca mais teremos O Senhor dos Anéis. Teremos filmes. E isso, como bem sabia Bilbo, não é a mesma coisa que uma aventura.

Editor de Contéudo deste site. Eu não sei muita coisa, mas gosto de tentar aprender para fazer o melhor.