Ler “Desconstruindo Una”, obra da quadrinista inglesa Una, publicado em 2016, pela Editora Nemo, é lidar, junto com a protagonista, com o silenciamento e a carga de ser uma mulher em (des)construção em cenários micro e macro, quase sem escapatória, quase que obrigatoriamente. Isso porque, junto às vivências de Una como uma menina adolescendo e lidando com os traumas advindos das violências cotidianas que sofreu, acompanhamos o desenrolar das investigações sobre um assassino em série de mulheres (comparado a Jack, o estripador), que aterrorizava o lugar onde ela morava, o condado de West Yorkshire, na Inglaterra, na metade final da década de 70, e a tão frequente culpabilização das vítimas que vemos acontecendo até hoje em casos que envolvem crimes de homens contra mulheres. Para onde se escapa quando o medo está no universo mais particular, mas também está no universo mais amplo?
Desconstruir é isso mesmo: desfazer para reconstruir. Una vai se desfazendo (ou sendo desfeita) sob nossos olhos, vai sofrendo as metamorfoses do existir mulher, lidando com as forças da sua natureza, refletindo sobre si e sobre o que está ao redor, se reconstruindo nesse processo, sofrendo as baixas trazidas pelo trauma e pelo fato de viver numa sociedade machista. O tempo todo sendo destruída e se reconstruindo.
Nada é linear, nada é resolvido e perene em “Desconstruindo Una”. As escolhas verbo-imagéticas da autora mostram isso na variedade de tipos de imagens (traços mais simples às vezes, complexos outras tantas) que conduzem a narrativa e nas palavras que, muitas vezes, não seguem em linha reta, mas se adaptam às imagens, obrigando o leitor a mudar suas perspectivas de leitura para acompanhar o fluxo, para ver lados outros.
Nas sutilezas das linguagens verbal e imagética, Una vai nos permitindo construir os paralelos necessários para que sua história também nos desconstrua, nos fazendo questionar se a mesma sociedade que maltrata mulheres em doses homeopáticas, todos os dias, nas coisas mais prosaicas, não é a mesma que dá sustentação para a existência de um assassino de mulheres, o qual gera curiosidade e certo fascínio, enquanto as vítimas têm suas perscrutadas e sua moral questionada. Essas duas narrativas que seguem se entrecruzando, reais e vividas ou conhecidas pela autora, são perpassadas por reflexões baseadas em evidências, fatos e estatísticas documentados, que fazem com que o leitor perceba a história de Una ainda mais aproximada às histórias das vítimas do assassino e mais aproximada às histórias de tantas e tantas mulheres. Nesses momentos, “Desconstruindo Una” é didático e crítico de uma maneira pertinente e necessária para que percebamos estar diante de algo que não é ficcional nem restrito a acontecimentos fortuitos e distantes: a integridade física, mental e emocional das mulheres está sob ameaça todos os dias, em contextos diversos, em épocas diversas.
“Desconstruindo Una” é, assim, de fato, um convite à transmutação de silenciamentos e traumas pelo mergulho em uma história que, sendo de uma mulher só, encontra e causa identificação em tantas outras vidas cansadas de carregar tantos não ditos cotidianos.
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