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Frankenstein aos 200 anos — por que Mary Shelley não recebeu o respeito que ela merece?

creation … Boris Karloff in Frankenstein (1931), directed by James Whale. Photograph: Allstar/Universal

O Frankenstein de Shelley vem falando sobre ansiedades tecnológicas e culturais do Iluminismo ao #MeToo. Mas as realizações da sua autora foram muitas vezes rejeitadas ou tratadas com ceticismo.

[Autoria: Fiona Sampson]

[Tradução: Dani Marques (idealizadora do zine “Desembucha, mulher!”), e Nayara Barros (doutoranda em Filosofia pela UFSC)]

FIQUEI fascinada por Mary Shelley e sua novela mais famosa por causa de seu marido. Por volta de 2011, encontrei-me tentando dar sentido à poesia de Percy Bysshe Shelley . Foi uma tarefa complicada. Percy era acima de tudo uma criatura de seu próprio momento cultural, e nada como um zeitgeist. No entanto, o Frankenstein de Mary sai do mesmo tipo de êxtase político e de conexões culturais semelhantes que o verso de seu marido e é o romance dela que continuou nos fascinando.

Duzentos anos após sua publicação em janeiro de 1818, a obra ainda nos fala diretamente como um mito sobre a vida contemporânea. Ela inspirou adaptações de filmes em todos os gêneros, desde a comédia Caper Abbott and Costello Meet Frankenstein até a ópera quase-rock The Rocky Horror Picture Show e, clássicos de ficção científica, como Blade Runner . Depois, existem toda a parafernália e cafonice aparentemente sem fim em quadrinhos e cosplay (onde os fãs se vestem como seus personagens de ficção favoritos). Tornou-se recurso jornalístico para abreviar o sentido de intervenções tecnológicas em biologia humana ou ciência médica: o Dr. Frankenstein e sua criatura fazem o seu caminho pela via principal da vida moderna. Eles reaparecem em nossas fantasias e pesadelos de forma mais consistente que a maioria das personagens de ficção ou históricos. Agora, podemos esperar uma série de novos Frankensteins, com as confusões do gigante cheio de cicatrizes favorito de todo mundo e seu criador, refeitos, mais uma vez.

Mary tem sido muito pesquisada, muitas vezes em termos de ser boa ou ruim para Percy. Mas ela não tinha sido colocada no centro de sua própria história desde a biografia magistral de Miranda Seymour em 2000. Eu queria descobrir uma Mary Shelley para nossos tempos: encontrar a garota atrás do livro e reconstruir o que ela deveria ter gostado de escrever. Sua história é tão arquetípica como a dos dois personagens mais famosos de Mary: sua vida e relacionamentos com os homens não podem ser mais relevantes para nossa era #MeToo . Mary tinha apenas 18 anos quando teve a ideia de Frankenstein; 19 quando ela terminou de escrever o livro. Como uma adolescente pode apresentar não um, mas dois arquétipos duradouros: o cientista obcecado pela pureza de sua pesquisa, mas incapaz de ver que ela tem consequências éticas e sociais e o quase-humano que ele cria?

É uma conquista surpreendente, e ainda mais quando nos lembramos de que, sendo uma menina, Mary não foi educada da mesma forma que muitos de seus colegas de escrita romântica. Ao contrário de Percy, ela não tinha Eton nem Oxford, mas tinha aulas na escola doméstica e seis meses na Escola Feminina da Senhorita Pettman em Ramsgate, e aprendeu a folhear os livros da biblioteca de seu pai. Seus pais eram dois dos mais notórios radicais de sua época: sua mãe, que morreu de complicações 11 dias após seu nascimento, era Mary Wollstonecraft, autora de A Vindication of the Rights of Woman [Reivindicação dos Direitos das Mulheres]; seu pai era o filósofo político e romancista William Godwin. Ele pode ter sido um defensor do anarquismo, mas sustentou muitas convenções contemporâneas em casa. Uma vez que Mary fugiu com Percy aos 16 anos, por exemplo, o ex-apóstolo do amor livre cortou relações com sua filha até que ela se tornasse respeitável.

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Então, como foi que Mary criou sua obra-prima precoce? Uma resposta dada pelos leitores e críticos ao longo dos anos é que ela não o fez. Num primeiro momento, os revisores anônimos supuseram que essa novela cheia de idéias foi escrita por alguém próximo a Godwin, mas não sua filha. Percy, como genro, foi creditado em seu lugar. Mesmo nos últimos anos, as correções de Percy, visíveis nos cadernos Frankenstein mantidos na Biblioteca Bodleiana, em Oxford, foram apreendidas como prova de que ele deve ter pelo menos co-autor do romance. Na verdade, quando examinei os cadernos pessoalmente, percebi que Percy fazia muito menos do que qualquer editor trabalhando em publicação hoje.

Uma segunda resposta cética à surpreendente conquista de Mary a menospreza, sugerindo que os arquétipos de Frankenstein e suas criaturas não são de fato originais. Tais céticos citam o mito clássico de Pigmalião, um escultor que cria um amante para si mesmo, ou a figura meio humana de Calibã, em “A Tempestade”. Ambos faziam parte do cânone cultural do início do século 19 e, crescendo em uma casa literária, Mary teria conhecimento deles.

Mas suas próprias criações diferem das duas, e são essas qualidades diferentes que nos falam tão vividamente hoje em dia. Pigmalião, pelo menos nas “Metamorfoses”, de Ovídio, não se propõe a criar um humano, ele simplesmente se apaixona por uma de suas próprias criações. A deusa Afrodite é tão tocada por isso que ela traz a escultura para a vida para ele. A peça de George Bernard Shaw de 1913, “Pigmalião”, reconta essa parábola a respeito da vaidade artística. Sua história sobre Henry Higgins, o lingüista que reeduca uma jovem vendedora de flores de rua, mas o faz em benefício próprio, não dela, permanece familiar na versão de Lerner e Loewe, no musical My Fair Lady.

Uma estátua também se transforma em uma mulher em “Conto do Inverno”, de Shakespeare, quando a figura da falecida esposa do rei Leontes ganha vida. Todo menino da escola primária do século XVI recebeu um punhado de educação clássica; É provável que o jovem Shakespeare tenha encontrado o mito de Pigmalião em sua sala de aula da cidade de Stratford-upon-Avon. Assim, d“A tempestade” ecoa outro mito clássico em que o Minotauro, como Calibã, um habitante da ilha, representa a hedionda descendência de uma mãe humana e um pai sobrenatural, que domina a ilha até ser subjugada por um herói que chega.

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Claramente, nenhum dos dois é precursor do jovem e ambicioso médico de Mary, que quer criar o humano perfeito, mas não consegue fazê-lo. De fato, Frankenstein é um dos grandes romances de fracasso, tomando seu lugar entre a obra-prima do século 17 de Cervantes, Don Quixote (que Mary leu enquanto ela estava trabalhando em seu romance) e a novela de 1952 de Hemingway, O Velho e o Mar . Em ambos os livros, porém, o fracasso é visto com compaixão, no contexto da dignidade humana e dos ideais. Frankenstein, por outro lado, retrata isso como o resultado destrutivo da ideia de superação. O retrato que Mary faz do fracasso como o coração escuro da arrogância, é expresso em termos tão fortes, que parecem quase religiosos. Com certeza, essa jovem filha idealista de um ex-ministro dissidente acreditava que o certo e o errado eram uma questão de fato, não apenas uma opinião.

No entanto, o apelo apaixonado de Frankenstein pela justiça está em movimento, não em sermões. Mary nunca teve a chance de ser uma pedante. Mesmo quando ela estava escrevendo o que se tornou seu primeiro romance, anos de uma censura severa da vida privada de uma mulher que hoje seria chamada de “vergonha” começaram. Ela havia sido condenada ao ostracismo por familiares e amigos por fugir com Percy, um homem casado, e foi submetida a especulações e risos por conhecidos do sexo masculino. O casal se casou depois que a primeira esposa de Percy, Harriet, tirou a própria vida, mas foram considerados tão desonrados que, em uma decisão sem precedentes, foram-lhes recusada a custódia dos filhos do primeiro casamento de Percy. Nos anos que se seguiriam, Mary participaria de um sermão pregado contra ela, encontraria o marido visto envolvido com outras mulheres, e seus sogros fariam campanha para tirar seu filho sobrevivente.

Ostracised for her relationships, held back as a writer … Mary Shelley. Photograph: National Portrait Gallery London

Mesmo assim, por mais sincera e envolvente que seja, sua postura moral não é o que faz Frankenstein se sentir tão contemporâneo. Nem sua tecnologia do início do século XIX. Mary imaginou primeiro uma combinação de matemática e alquimia — e depois eletricidade em sua edição revisada de 1832 — animando seu corpo de retalhos. Nenhum dos dois realmente ressoa na era atual dos avanços bioquímicos e da engenharia genética. A cena de eletrocussão de laboratório imaginada pela primeira vez no clássico filme de 1923 de Frankenstein, de James Whale, agora parece fabulosamente cafona.

(Continua…)

[*] Artigo publicado em THE GUARDIAN (13/01/2018)

[**] Todos os textos traduzidos possuem conteúdo meramente didático e não lucrativo. Para citações deve-se recorrer ao original.

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