Nascia no Rio de Janeiro, em 1942, Amauri Gonçalves Pamplona Machado, ou apenas Amauri Pamplona. E é, provavelmente, o melhor dentre os mais desconhecidos quadrinistas do Brasil. Mas isso deve mudar: bom ele continuará sendo, mas sua obra não cabe no anonimato. Mas vamos por partes…
Amauri Pamplona foi daquelas crianças que, desde muito cedo, engatinhou pelos caminhos da arte, principalmente rabiscando e copiando as histórias em quadrinhos que lia. No fim da adolescência já era um rapaz estudado, aprendera a falar e escrever em inglês, conhecia bem o francês, o espanhol e o italiano.
A maior parte de sua produção perdeu-se entre os leitores, pois eram fanzines, produzidos em exemplares únicos e não fotocopiados. O Grelo, revista independente que criara e que satirizava O Grilo, título famoso à época, circulava de mão em mão pelo subterrâneo carioca, e foram produzidos dezenas de números do título. Entre suas 30 ou 40 páginas, muitas entrevistas e cartas de leitores. Quando começou, a correspondência era dominada por cartas sobre homossexualidade, com enorme presença de comunicação entre lésbicas (muito provavelmente, estimuladas pela brincadeira com o título, uma gíria para o clitóris).
Suas histórias em quadrinhos (HQs) têm o traço influenciado pelas características dos antigos desenhos da Hanna-Barbera (Os Flinstones, Manda-Chuva, Os Jetsons, Zé Colméia, entre outros), recorrentemente utilizando-se de animais como protagonistas de suas histórias, como o Raposo e Tururuca.
A paixão pelo cinema americano, das origens até os do final da década de 1970 – pois fez questão de enfatizar que odeia a produção dos anos 1980 em diante – transformaram a concepção dos personagens e definiram sua narrativa. Segundo Amauri, “a movimentação dos quadrinhos é toda cinematográfica. Os atores estão sempre fazendo novos papéis. Eu crio as histórias, eles interpretam”, afirmou na revista Zig-Zag.
Sua produção varia desde as mais desvairadas e, aparentemente, inocentes estórias, até adaptações de obras de autores como Voltaire (Cândido), Edgar Alan Poe (A queda da Casa de Usher) e Glauber Rocha (Terra em Transe). Nem a bíblia escapou de sua caneta, em uma adaptação que fez para o Gênesis. Tudo produzido e publicado de forma independente, artesanal, com canetas nanquim e pincéis atômicos coloridos, em exemplares únicos.
Carioca, visitava pouco os parentes no Piauí, mas aqui residiu, na rua Félix Pacheco, de 1984 a 2006, quando morreu no dia 1º de julho, vítima de infarto agudo do miocárdio enquanto assistia à fatídica partida de futebol que tirou a seleção da copa do mundo naquele ano: um a zero para França. Maldito jogo!
Até onde se sabe, produziu 87 revistas/fanzines O Grelo, 12 livros de cartuns (alguns enormes, com mais de 400 páginas), livros de Hai Kais e outras poesias. Apesar de tudo isso, é um quase inédito, pois publicado mesmo, em edições de gráfica com boa tiragem, teve apenas duas participações em revistas locais, de 1995 e 1999 (Zig-Zag e Pulsar, as duas de Teresina).
Mas do que trata os quadrinhos de Amauri Pamplona? Antes de responder, precisamos entender onde o autor se encontrava ou se identificava, culturalmente. É preciso entender que nas décadas de 1950 e 1960, florescia uma produção cultural que privilegiaria a antiarte e a contracultura, de conteúdo marginal que confrontava o preestabelecido e influenciava artistas ao redor do mundo. E no Brasil, a década de 1960 também foi muito turbulenta para a cultura e política. Amauri viveu estes momentos, e podemos identificá-los em sua produção. O próprio quadrinista se define como “…anárquico, caótico. Fiz muita crítica política durante o regime militar”. E como suas publicações eram exemplares únicos, atingindo um pequeno público de amigos, vizinhos ou de curiosos que por acidente encontrassem seus gibis, não sofreu represálias ou perseguições políticas institucionalizadas. Por ser, praticamente, seu próprio editor e público-alvo, produziu o que quis!
Em 1969, por exemplo, fez a HQ Batalha de Machões (Zig-Zag). Trata-se de uma fábula sobre animais que vivem em um país fictício qualquer e que se unem às forças militares do Pentágono para exterminar a “ameaça vermelha” dos índios. Podemos entender os índios como os “inimigos da pátria e da família”, uma clara alusão à perseguição sofrida pelos comunistas no Brasil e da intervenção norte-americana no governo local.
Além do engajamento político, vale ressaltar a versatilidade e a numerosidade dos personagens criados por Pamplona. Além do Raposo e Tururuca, Amauri confessou que gosta muito de outra dupla: Abilolado e Cidadão, além de Carla, Santinha e Loba. São dezenas de personagens, tratados por Amauri como atores que interpretam papéis nas mais variadas HQs que cria. “Raposo é o mais interessante”, disse uma vez. “Abilolado é um rato barbudo, completamente doido. Cidadão é um patinho amigo dele que o segura e controla seus exageros. Ajuda o amigo a sair das enrascadas”.
Antonio Amaral (artista plástico e autor do quadrinho Hipocampo), analisando os gibis do colega, de quem é um fã confesso, disse que “quando o rato Abilolado e Cidadão botaram um negócio de mercadorias exóticas e objetos inúteis, a oferta de saca-rolhas de isopor não atendeu à demanda, nem quando aquela chuva horizontal chegou desconsolada em algum lugar nesse cogumelo. Lembro-me como se fosse ontem, quando o avião-pamplonino vazou uma insignificante nuvem passageira, alagando-se por dentro, feito uma canoa, digo, um aeroplano furado, na esperança de que, pelo menos, os testículos ainda estivessem no devido orbital, já que não se tem onde botar centenas de monitores, ou HQs, como dizem, no foco. Onde colocar 120 personagens? E os coadjuvantes, que crescem como cupins em nossa memória?! Que projeto editorial comportaria uma obra fumegante, incrustada na genialidade de um gentleman? Nem o autor conteve esta avalanche”.
Seus inúmeros personagens atuam em várias estórias ao lado de coadjuvantes, afinal, como já foi dito, Amauri considera os quadrinhos numa ligação muito íntima com o cinema. A elasticidade e o ritmo também são incríveis, lembrando em muito a forma como Henfil definia seu desenho, semelhante a uma caligrafia rebuscada. Ainda há uma ligeira semelhança com a animação, pois, em sendo, seus personagens animais – raposas, coelhos, pássaros, jacarés – fazem parecer, como já foi dito, um Hanna-Barbera, um quadrinho inocente, infantil, ingênuo. Ledo engano. O próprio Moacy Cirne já nos advertiu que não existem quadrinhos inocentes, ou mesmo arte apolítica.
Se você apenas passa os olhos, descuidadamente, por sobre um gibi de Amauri, provavelmente se enganará com o que vê. Por exemplo, a história Raposa e Tururuca, em Carga Perigosa parece tratar de um humor bobo: os protagonistas são encarregados de transportar um caminhão com milhares de bolas de gude (mais conhecidas no Piauí como “petecas”), o veículo sofre um acidente, vira e espalha o carregamento por toda a cidade, causando o maior alvoroço. A história muda de tom quando a avalanche de bolinhas de vidro derruba uma passeata do exército (inclusive virando um tanque de guerra de cabeça para baixo!). Neste momento, um jovem topetudo grita: “Avante, turma!” e um grupo de jovens que estavam às escondidas, armados de porretes, começam a espancar os soldados caídos ao chão.
Já em Raposo e Tururuca Na Alvorada da Idade do Aquário, os dois personagens visitam o festival de Woodstock. O primeiro detalhe que nos chama atenção é que essa história é quase contemporânea ao festival, que aconteceu em agosto de 1969 e o quadrinho foi produzido entre outubro e dezembro daquele mesmo ano. Amauri descreve as principais características e mudanças culturais reveladas ao público pelo show que mudou a história do rock. Estima-se um público de 450 mil pessoas e engarrafamentos de 20 km com cerca de 130 mil carros. “É um espetáculo assombroso!”, disse Raposo. “Amor, liberdade, novos códigos de comportamento, novas procuras”, concluiu.
Apesar da qualidade, Pamplona nunca foi publicado na cidade carioca. Em entrevista à Pulsar, disse: “Minha mãe gostava [de ter um filho quadrinista], sabia o nome de todos os personagens (…) a reação do meu pai era o contrário. Uma vez terminei um Grelo e ele estava lendo o jornal: ‘Aqui um Grelo para você ler, seu Francisco’. E saí. ‘Eu tô lendo o jornal e você me dá um negócio que não me interessa’[simulando arremesso]. Sempre foi contrário. Nunca leu, mas foi ele quem procurou o Ziraldo, o Jaguar, o Fortuna pra me publicar. Ele tinha essa ambiguidade”.
A curiosidade aqui tem a ver com sua relação com personagens tão importantes da imprensa brasileira. O Jornal Pasquim, lançado em 1969, foi um grande foco de resistência cultural à governo militar. Amauri confessa: “Já te contei e vou repetir uma coisa que me dói: fui rejeitado pelo Ziraldo e Fortuna. O Jaguar tava de porre e me recebeu bem, prometeu uma coisa que pareceu que era grupo. Depois do pontapé na bunda do Ziraldo e do Fortuna, pensei que seria o terceiro chute. Depois o Lan terminou aceitando meu trabalho. Vim para Teresina, como exilado”.
Por conta disso, Amauri Pamplona descarregou suas armas contra o Pasquim. Em tirinha de uma página, previu a extinção do jornal para 1984, errando a data em 7 anos, já o periódico durou até 1991. Ele não aguentaria mais tantos anos de “chutes, esnobismo, gratuidade e bairrismo”, segundo o próprio Raposo. Para concluir, chegou a desenhar um rato, símbolo do jornal, enforcado numa árvore. Percebe-se que a relação não era amistosa.
Há também, em O Grelo, críticas e resenhas a outros meios culturais no momento, como a música brasileira. Na edição 25 de O Grelo (1973. pg. 38), disse que “envelhecem rápido, os Novos Baianos. Artisticamente, já estão com a idade de um Paulinho da Viola ou de um Luis Carlos Sá”. Há artigos sobre filmes e desenhos animados de sucesso, como as produções de Stanley Kubrick, Francis Ford Coppola, Hanna-Barbera ou de Walter Lantz, entre outros.
Há artigos interessantes e inéditos nestas revistas, escritos à mão, como tudo em todas as páginas de O Grelo. Há artigos que o próprio Amauri escreve como se fosse um de seus personagens. Há artigos de cunho existencialistas, como um escrito na edição 25, que aborda a derrelição, que seria “o estado de abandono em que se acha o ser humano lançado no mundo”, apresentando uma certa ligação biográfica, pois Amauri sentia-se sozinho. Escreveu: “Se se vive em família (Jetsons, Flinstones), ou se se está no campus (Archie, Doomesbury) ou no quartel (Beetle Baily) ou no navio (“Meio Quilo”) ou se se anda bem ou mal-acompanhado, como Batman, A Nova Diana, a Nova Supermoça […] a derrelição não ocorre verdadeiramente. É preciso que haja o sentimento de marginalização, acima do sentimento de marginalidade: Charlie Brown, mesmo quando treinador de equipe de baseball. É preciso que haja a solidão absoluta mais por escolha do que por destino”.
Em história publicada em O Grelo nº 26, Amauri faz mais algumas citações sobre sua solidão com ele mesmo sendo protagonista. Frases como: “E também não creio em amizade. Estamos todos sós”; “Como o de um rato, meu trabalho é silencioso, e só a mim interessa”; “A solidão é o maior legado recebido pelo homem não importa de quem!”, estão recheando as páginas, revelando um pouco do próprio autor.
Em uma tirinha da edição 25 de O Grelo, por exemplo, Raposo e Tururuca estão sentados e lendo um livro que diz: “Porque o mito é a visão instantânea de um processo complexo que normalmente se prolonga por um longo período”. Raposo se levanta, vai até a janela com uma câmera e fotografa uma manifestação de descontentes com a situação do país. Há vários cartazes com textos exigindo “Greve Total”, ou “Diga não ao patrão”, ou “Menos fome! Mais oportunidades”, ou ainda “Abaixo a prepotência”. Raposo, orgulhoso, diz ao amigo segurando a câmera: “Eis o mito. Vamos revelá-lo?”.
A metalinguagem também está presente em várias tirinhas, quando personagens tentam saltar dos quadrinhos, ou quando Bob Bang e Chefe Leo conversam em Batalha de Machões: “É Verdade companheiros! Só com a união entre nosso pessoal e o de Bob Bang obteremos a vitória!”, diz Chefe Leo. “Vamos começar por construir um forte com as árvores do bosque!”, fala Bob Bang. “É o bosque que só irá aparecer no quadrinho seguinte”, e Chefe Leo aponta para fora dos limites do quadro, indicando o local onde encontrariam o bosque.
Algumas de suas HQs são verdadeiros exemplos de contracultura, abordando, principalmente, a liberdade sexual, entretanto, outro tipo comum de liberdade que os quadrinhos de Amauri defendem é o uso de drogas, como a maconha. Em O Pássaro Insólito, sua opinião é colocada de forma simples e rápida, numa história em quadrinhos de apenas duas páginas. Conta a história de um concurso de canto de pássaros, onde o dono do George, um passarinho “bico doce”, lhe dá maconha para fumar minutos antes do início do concurso. George faz um belíssimo show que agrada a todos, mas no final, livra-se das grades que o prende e parte soltando os outros pássaros que também estavam presos. “Nunca deveria ter dado ‘erva’ ao bichinho. Os tóxicos ativam a imaginação, mas o grave defeito de despertar tremendo amor pela liberdade”, diz o dono do George, concluindo a história com suas defesas ao consumo da maconha.
Os quadrinhos de Amauri não esqueceram de trazer denúncias sobre período do governo militar. Mesmo com humor, fez uma sufocante história de nove páginas sobre A Tortura da Gota D’água. Acorrentado, um homem encontra-se na obrigação de não enlouquecer, enquanto diariamente, centenas de vezes por dia, uma gota de água cai, em pequenos intervalos de tempo, ininterruptamente, em sua cabeça. Esse tipo de tortura, assim como o “Pau-de-arara”, eletrochoque e outros, foram praticados em prisioneiros políticos durante toda a ditadura no Brasil.
Amauri desenhava freneticamente. Nos três últimos meses de 1969, fez um livro chamado O Laboratório do Cientista Louco. A edição, único exemplar, possui o absurdo de 456 páginas e 55 histórias em quadrinhos temáticos nos departamentos Horror (vampiros, múmias, lobisomens e possessões por demônios), Política (revolução, sequestro, propaganda e repressão), Juventude & Contestação (hippies, revolução social, manifestações, rock’n’roll, guitarras contra violões convencionais e novos rumos da arte) e de “Thrillers” (detetives, criminosos imprevisíveis e violência).
O autor procura explicar seu livro, uma introdução escrita no final do ano de 1969: “Neste livro, a preocupação fundamental foi com a mais vasta possível variedade de temas. Abri as revistas e folheei e li e me informei. Colhi dados nos filmes, nos teatros, nos anúncios. Após um ano e meio de recesso, voltei a consumir literatura de ficção: Sallinger, H. G. Wells, Carson Mc Cullers, Dashiell Hammett, Lewis Carrol, devorando tudo e sempre faminto. Surgiu O Pasquim, travei contato com a mais completa revista dedicada à divulgação das histórias em quadrinhos: LINUS, que permaneço consumindo mensalmente. A TV me trazia, diariamente, novos temas, através de programas como Perspectiva: os hippies de Satã, os cosmonautas, o desemprego, os novos rumos dos meios de comunicação”. Trata-se de uma obra de grande magnitude, e, nos lembrando daquela pergunta de Antonio Amaral, sussurramos: que projeto editorial comportaria tamanha avalanche?
A produção de Amauri Gonçalves Pamplona Machado parece ter sido feita com o propósito de ser estudada, a preocupação com os temas e com o momento que viveu é um prato cheio de informações é, sem dúvidas, um enorme baú cheio de surpresas e históricas obras de arte do quadrinho nacional, que precisa, urgentemente, ser mais estudado e conhecido.
Obs: Este artigo é fruto de um capítulo do trabalho de conclusão de curso (TCC) de Bernardo Aurélio, no curso de história pela UESPI, de 2005, intitulado “Quadrinhos pós-68”.
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