As vaidades e os bastidores do mundo literário sob um olhar cínico e mordaz. Uma sátira tresloucada que apresenta o melhor romance jamais escrito. Isso e muito mais você, caro leitor, encontra neste conto que traz o humor fino tão próprio de seu autor, Rafael Machado.
Sim, tenho a felicidade de inaugurar mais um quadro de nosso Janeiro Literário. Chamado Um Dedo de Prosa, irá ao ar todos os domingos e trará uma amostra do talento de nossos colaboradores e convidados.
Quer ver seu texto publicado aqui no site em nosso mês temático? Mande sua poesia, crônica, resenha e conteúdos afins para o e-mail rafaelmachado@quintacapa.com.br.
O Imaginário Transgressor
Rafael Machado
Será como Rubem Fonseca reescrevendo Minha Vida, do Tchekhov, ambientando na Petrópolis dos anos 50.
Algo próximo do que Umberto Eco alcançou em A Chama Misteriosa da Rainha Loana, mas com o traço próprio do regionalismo que Graciliano Ramos tão bem explorou em seus romances.
Uma criação extraordinária, podem acreditar. Um dia serei comparado Foster Wallace em termos criativos e provocadores.
Eu dizia coisas assim quase todos os dias. Para cada pessoa, uma resposta diferente. Nunca as repetia. A impressão que deixava era das melhores. E poderia passar meses repetindo essas mentiras, afinal. Na verdade, se as reunisse, renderiam um bom livro chamado As Melhores Intenções Sobre Romances Não-Escritos. Mas não poderia apresentar algo assim. Esperavam mais, algo épico. E era isso que estrangulava meu juízo.
A coisa toda começou por acaso. Certa tarde, numa dessas inspirações voláteis, escrevi em poucas horas um conto sobre um homem que escrevia sobre sua antiga paixão e como ele esperava que isso consertasse as coisas entre os dois.
Provavelmente eu escrevia sobre mim, mas a subjetividade estava em transferir para meu personagem o que não ousaria jamais dizer de forma clara. Então um namoro foi relatado como casamento, e oito anos foram encurtados em quatro, para transformá-lo em alguém mais corajoso – não esperando a situação se arrastar muito.
De qualquer forma, fiquei feliz pelo resultado e o enviei para alguns amigos, pedindo uma avaliação. Uma delas, escritor por ofício e vocação, leu com critério e fez observações valiosas, me ajudando a estruturá-lo melhor. Acabei acrescentando páginas para ajustar o final e guardei a versão revisada impressa junto com outros papéis.
Três meses depois, deparei-me com certo edital promovido pela Secretaria de Cultura que anunciava a seleção de textos inéditos, nas categorias de romance, conto e peça teatral. Além de prêmios em dinheiro para as primeiras colocações, seriam publicados o ganhador da primeira categoria e os seis primeiros lugares da segunda, com seus trabalhos reunidos numa coletânea.
Decidi submeter sem grandes expectativas. E qual minha surpresa quando meu nome foi relacionado entre os vencedores. Fiquei sem reação. E justamente por ser algo tão distante de mim, de certo modo, não me habituara à menção da vitória e acabei a deixando de lado. Não pensei muito a respeito até receber o convite para um coquetel com trezentas pessoas em que se realizaria formalmente a premiação e o lançamento dos livros.
Preciso dizer: o evento como um todo, o clima, as pessoas, as conversas em torno; aquilo realmente me pegou de surpresa, me deixando finalmente excitado por fazer parte da famigerada “cena cultural”. No entanto, olhando ao redor, não enxergava rostos conhecidos e, afora o prefeito, que me parabenizou pela conquista, e o secretário de Cultura, que me entregou um cheque e uma placa, não falara com ninguém, perambulando pelo salão com doses sucessivas de uísque.
Após descer do palco, onde fui chamado para as formalidades, dei algumas entrevistas e já me preparava para sair quando fui abordado por um jornalista. Ele pretendia fazer breves perfis com todos os ganhadores para a edição de domingo do jornal e pedia minha colaboração. Concordei imediatamente.
É aqui que a ruptura da realidade começa. A primeira fissura… Complicado apontar minhas motivações. Frustração? Vontade de alguma forma ser integrado àquele círculo social? Ou plantar uma piada que só fizesse sentido para mim? Acontece que usei o espaço para promover o que eu não era, ou melhor, não revelei minha natureza de um mero escritor de ocasião e me fiz uma força latente das letras, perdido na multidão e felizmente revelado. O jornalista pediu que cada um falasse um pouco de si e citasse futuros projetos, caso houvesse. Fui econômico em minhas palavras, registrando a grande ironia na linha final: “…e prevejo para o próximo ano meu primeiro romance, que venho escrevendo há anos e carrega o título provisório de O Dia Interior.”
Não havia romance algum, como já disse. Entretanto, isso era o que menos importava no momento. Quão tolo eu fui, quão tolo! Percebi logo cedo que minha mentira não era necessária. Em cidades pequenas como a que vivia então, bastaria achar um meio de frequentar certos círculos que seria sempre lembrado. E a condecoração recebida no prêmio legitimou minha presença em toda sorte de evento.
De forma que os demais contemplados no prêmio, cujos rostos e nomes eu desconhecia até então, se tornaram tão frequentes nos mesmos ambientes que já os tratava com intimidade. Nada ou pouco sabia sobre cada um deles. As conversas eram circunstanciais e costumavam girar em torno dos ausentes em cada ocasião. Se eram movidos por algum tipo de inveja ou competição, para mim pouco importava: tudo era divertimento. Eu os olhava de fora e acreditava que minha farsa não iria muito longe.
As pessoas forçavam tipos e pareciam carregar o horror das coisas mundanas, procurando sempre dizer algo relevante, principalmente sobre as banalidades. E as citações, as menções…! Aquelas caricaturas vivas me levavam à adjetivação que tanto rodava minha cabeça: provincianos. Vivendo em um lugar provinciano. Veja bem, eu não me sentia enquadrado (ou melhor diria arrastado) por essa afetação por me saber um não-artista, essencialmente. Um não-criador.
Se meu conto era um ponto fora da curva numa extensa lista de tentativas fracassadas, essa consciência me levara para aquilo que me segurava ali, no provincianismo gentil: a leitura. Por toda minha vida, os livros, de todos os tipos e assuntos possíveis, foram a companhia constante. A ojeriza que sentia de tanta exibição despropositada ao menos se fazia acompanhar de um revide à altura, quando julgava oportuno.
Já haviam notado minhas credenciais, por assim dizer. E o sarcasmo não passou batido. Se precisavam de diversão, sabiam a quem chamar. Mas eis que alguém recordou, meio por acaso, do que eu dissera na reportagem. E como anda seu livro?, perguntaram, e pelo estremecimento que abateu minhas pernas senti o quanto estava despreparado para o golpe. O livro… Mas que livro, afinal? Ah, sim, o livro imaginário que citei apenas para impressionar a todos; para fazer o mesmo tipo que agora atacava de jeito mordaz.
Naquele instante, nada pude fazer senão criar uma mentira para encobrir outra, a original: e comecei a descrever um trabalho audacioso, através do qual refletia minha experiência de vida naquela cidade. A cidade, entendam, como representação da relação do indivíduo com o mundo, mas ainda assim num ritmo traçado pelas minhas emoções relacionadas ao lugar, eu explicava, sem ter a menor noção se os outros acreditavam ou não.
Bem, não demorei a saber. Dias depois, um encontro na livraria por ocasião de um café literário e alguém me diz, olhos nos olhos: soube do seu livro. Fiquei bem interessada nele. Outro conhecido se aproxima; e de repente estava sendo exprimido para falar sobre o trabalho novamente. Foi quando se deu a vontade irrefreável de falar sobre algo inexistente, mas abruptamente real, ou assim deveria parecer; um castelo de areia feito com palavras, verborragia elegante, referências várias, até científicas, quando estava de bom humor; um romance além do romance, a ficção definitiva por essas paragens, aclamado de pronto, um colosso, enfim.
O engraçado é que, quanto mais mentia sobre o livro, mais satisfeito ficava com minhas enganações, e para não quebrar o encanto, protelava qualquer esforço no sentido de enfim realizá-lo, com receio que o produto final ficasse aquém das expectativas geradas, começando por mim. Era comum me pegar o imaginando, ciente que a fantasia em si já me bastava, um auto-proclamado Joyce precoce.
Mas os meses avançavam e comecei a temer que me transformassem em anedota. Ser engolido pelo cinismo dos demais seria demais para mim. Foi quando a providência veio em meu auxílio. O jornalista que pedira meu perfil, abrindo assim a caixa de Pandora para todo esse circo, teria uma nova coluna no caderno cultural do jornal de domingo e pretendia usar o espaço para apresentar a nova safra de escritores da cidade. Os novos – e não-tão-novos – que começavam a se destacar… E quem aparecia como escolha natural para a primeira matéria? Foi-me pedido uma amostra do lendário romance, uma prévia de duas laudas, que revelasse em primeira mão o que estava por vir.
A felicidade que no primeiro momento se deu pela lisonja foi logo substituída por uma ansiedade sem precedentes. Não havia romance algum! Nem uma linha sequer! Apertado pelo prazo de cinco dias para enviar o material, apelei para aquilo que concretizava a farsa como um círculo perfeito: no desespero, comecei a parodiar um dos meus livros favoritos, As Cidades Invisíveis, de Calvino, numa apropriação sem-vergonha da história.
No lugar de Marco Polo em palestra com Kublai Khan sobre as fantásticas cidades de seus domínios, coloquei-me criança, a ouvir de meu avô, capitão de um barco por longos anos, sobre as diferentes e exóticas paisagens que ele conhecera em seu ofício. Preciso dizer, escrever isso foi estimulante. Mesmo sabendo que aquilo não passava de uma tapeação momentânea, enxergar as frases se seguirem, uma a uma, formando um todo completo e linear mexeu com meus brios, me atormentando com a ideia de que, afinal, poderia mesmo tentar algo maior e verdadeiro. Em anexo ao texto, escrevi que aquele seria um trecho do terceiro capítulo, onde o protagonista, sentindo-se perseguido por uma sombra como o duplo de Dostoiévski, se trancava em casa numa quarta-feira e começava a resgatar memórias da infância.
No dia que o jornal saiu, fui à banca do centro, comprei meu exemplar e retornei para casa, decidido a não falar com ninguém. Foi apenas na segunda que olhei meu e-mail e as mensagens no celular. Ah, a ignorância, tão abençoada… A abundância de elogios e palavras carinhosas me deixaram a princípio incrédulo: estão mesmo sendo sinceros? Não admitia como ninguém se punha a me desmascarar, citar o plágio, caluniar um trabalho que, de tão propalado no meio, devia já alimentar antipatia de muitos. Decidi esperar uma semana, mas nada ofensivo surgiu depois desses dias. Pelo contrário. A fama do livro inventado só crescia. A expectativa por algo soberbo era agora certa, diante do trecho divulgado.
Foi quando tive certeza. Definitivamente, precisaria elaborar melhor minhas descrições. Torná-las tão complexas e remissivas, que aos poucos as pessoas se dessem por satisfeitas e pensassem que não precisavam ler o livro em si. Que, igual a mim, só a ideia dele, tal como podia ser, já bastava para engrandecer a literatura local e alçá-la aos picos da excelência, tal como ela própria se enxergava.
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