Quando uma antologia de contos consegue te fazer prender a respiração e estremecer sem ajuda de fantasmas, monstros e outras criaturas do além, devemos parar para enaltecê-la. Esse é o caso de O Vilarejo, do brasileiro Raphael Montes.
O Vilarejo é um lugar isolado, desolado por uma guerra civil e assolado por um inverno rigoroso. Com a escassez de alimentos devido à neve e o medo das barbaridades e consequências da guerra, a atmosfera é de uma tensão crescente, transformando o pequeno local em um lugar onde ninguém gostaria de morar. Entretanto, a cada passar de página, descobrimos que não é só por isso que este Vilarejo é um lugar inóspito.
“O vilarejo vem sendo dizimado a cada dia. As mortes são frequentes e o luto se sentou à mesa. Ninguém chora os mortos. Não podem desperdiçar energia lamentando a partida dos que não suportaram o frio e a fome.”
O livro tem sete capítulos, no qual cada uma leva o nome de um dos sete reis do inferno que, por sua vez, originaram cada qual um dos sete pecados capitais. Então, vemos personagens dominados pela Gula (Belzebu), Ganância (Mammon), Luxúria (Asmodeus), Ira (Satã), Inveja (Leviathan), Preguiça (Belphegor) ou Orgulho (Lúcifer) e como esses sentimentos podem dominar uma pessoa, destruindo todo o seu senso de civilidade e humanidade.
A obra é escrita no estilo fix up, no qual os capítulos que compõe a obra pode ser lido separadamente, sem prejuízo algum para o entendimento, porém, se conectam em algum ponto, formando, assim, um romance. No caso desta obra, a conexão está no próprio vilarejo onde as histórias ocorrem. Desta forma, os capítulos se passam cada um em um núcleo, numa determinada casa do vilarejo, porém, as histórias eventualmente citam algum personagem de outros capítulos e assim se entrelaçam. Como as situações são criativas e o enredo bem escrito, por mais que você consiga prever o que pode acontecer algumas vezes, a descrição consegue te pegar de maneira extremamente eficiente.
Eu preferi fazer a leitura sequencial da obra para melhorar a imersão na atmosfera do lugarejo e tentar pegar o máximo de detalhes possíveis. Não me arrependi da minha escolha e tenho certeza que a leitura foi bem mais proveitosa assim, pois, tendo as histórias bem vivas na mente você consegue construir (e desconstruir) a visão dos personagens ao longo da leitura.
Assim como em “Escuridão Total Sem Estrelas”, o que mais assusta aqui é ver como o ser humano consegue ser mesquinho, vil e odioso. Em histórias relativamente simples, o autor consegue trazer características complexas da natureza humana, que são, muitas vezes, potencializadas em tempos de crise. O que, a primeira vista, é um lugarejo onde todos se conhecem e têm uma convivência harmoniosa pode ser, na verdade, um lugar onde a podridão da humanidade está enraizada profundamente.
Um recurso interessante aplicado na obra é o prefácio escrito numa espécie de metalinguagem, no qual o autor conta como supostamente entrou em contato com as histórias narradas no livro, se afirmando como simplesmente um tradutor dos ocorridos no O Vilarejo. Tanto o prefácio quanto o posfácio são inteiramente construídos com essa ideia, o que é um grande mérito do autor na construção da aura misteriosa e macabra do livro.
A escrita de Raphael Montes é bem direta e fluída, entregando capítulos curtinhos e um livro de 96 páginas. A falta de descrição, que poderia ser um problema para alguns leitores de suspense/ terror, acaba sendo algo que encaixa muito bem na proposta da obra, pois, já no prefácio Raphael nos conta como a única ajuda conseguida para traduzir os escritos de uma língua (morta) original para o português, foi um velho dicionário. Embora seja um livro que pode ser lido de uma vez, acredito que você pode precisar de uns intervalos para respirar. Muitas cenas são viscerais e a narrativa é bem direta, mesmo abordando temas delicados como canibalismo e pedofilia.
Foi o primeiro livro do autor que li e o conjunto da obra me impressionou bastante, tanto com a criatividade das histórias quanto a condução da narrativa. Sem dúvidas, é um autor que manterei no meu radar e procurarei mais obras.
O livro foi lançado pela editora Suma de Letras e tem uma edição muito bonita, com trabalho de capa e diagramação lindíssimas. Além disso, conta com 14 grandes ilustrações do artista Marcelo Damm (que ilustram este post), que retratam algum ponto da narrativa e te ajudam a construir a imagem horrenda ali descrita.
Raphael Montes será um dos convidados do SALIPI deste ano (2018), se fazendo presente na segunda-feira, dia 04/06/2018, com uma palestra intitulada “Crime, Verdade e Ficção”, então, se você é de Teresina, esta será uma grande oportunidade para comprar o livro, pegar o autógrafo e prestigiar um autor nacional deste gênero ainda pouco prestigiado.
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