Conhecido por tijolos como “Crime e Castigo” e “Os Irmãos Karamázov“, o russo Fiódor Dostoiévski também é autor de romances breves, contos e novelas, onde explorou de forma exemplar estilos, propostas, ideias e obsessões, sendo pois hábil em narrativas de fôlego curto. Prova cabal é “Uma história desagradável” (Editora 34, 112 páginas, R$ 42,00), publicado originalmente em 1862 e que propõe – com a típica verve do autor – refletir as mudanças em curso na Rússia de sua época.
Aqui conhecemos Ivan Ilitch Pralínski, um alto funcionário da burocracia russa, vindo de boa família e crescido em ambientes aristocráticos. Em reunião com alguns amigos da mesma estirpe, mostra-se excepcionalmente sensível e empolgado com as reformas propostas pelo tsar Alexandre II, como o fim da servidão. Enquanto seus colegas se revelam reticentes com a “nova” Rússia que despontava, Ivan derrama palavras; verborrágico, declara amor a “toda” Humanidade e exalta a igualdade entre todos os homens.
E a vida, como a querer pregar-lhe uma peça, o coloca em situação que lhe permita provar suas neófitas crenças: avista o casamento de um simples subalterno, Pseldonímov, a caminho de casa, e decide invadir a festa para confraternizar com seus “iguais”. Tem início uma comédia de erros onde o autor, através das situações mais constrangedoras, mostra que a desigualdade social, secular, não seria varrida do horizonte com um simples decreto. Definitivamente não.
Ivan Ilitch ensaia algumas palavras, é ignorado; o discurso onde se colocaria magnânimo com os presentes, simbolizando as mudanças, se perde em meio ao caos que impera. Danças, suor, brincadeiras vulgares e muito álcool jogam por terra qualquer planejamento do a princípio constrangido nobre. As pessoas, no início acuadas pela sua presença, se soltam aos poucos, à medida que sua presença, banalizada, acaba por se tornar alvo de ataques de um jornalista e de brincadeiras grosseiras de um estudante.
Pseldonímov a tudo assiste, bestializado; pois sabe que, no fim, caberá à gente pobre e honesta pagar pelas “excentricidades” dos ricos. Uma reflexão sempre atual, apresentada com maestria pelo autor. Este volume traz a primeira tradução direta da novela no Brasil, feita por Priscila Marques, e conta ainda com um pioneiro ensaio do escritor modernista russo Aleksei Riémizov, que procura analisar a complexa trama de referências da obra.
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