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Coluna | Quadrinhos, cinema, imaginário coletivo e padrões (Malú Flávia)

Texto: Malú Flávia
Vou começar esse texto com um trecho narrativo/descritivo, não saia daí!
Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos dele. O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio de ouro encimando o nariz grosso e romano. E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu adivinhara.” (trecho retirado de A legião estrangeira., de Clarice Lispector).
Nesse trechinho, um personagem é apresentado a nós e tem sua aparência descrita com a apresentação de algumas informações. Com certeza, você imaginou como seria o personagem aí na sua cabeça. Provavelmente, você imaginou um cara branco, não foi? Embora  essa informação não tenha sido dada, por que assumimos a cor?
Você deve estar se perguntando por que diabos eu estou falando disso e o que isso tem a ver com a cultura pop. Bom, esse é um texto sobre Pantera Negra e eu quero discutir o auê que o filme tem causado: por um lado, celebração por parte do povo negro, por outro, criticas de propaganda social e segregação.
Mas, afinal de contas, o que Pantera Negra tem de diferente que têm causado tanto orgulho em uma parcela da população que vê ali uma representatividade?
Primeiramente, e o fato mais marcante, temos um filme de super herói, blockbuster, milionário, da cultura pop, com elenco majoritariamente negro, com um protagonista negro. As pessoas críticas sempre aparecem com um “ah, mas existem diversos outros  super heróis negros!” e citam os mesmos nomes de sempre, que são tantos que a lista logo acaba e temos só essas pequenas participações. Destaque-se o fato de que, dos citados, provavelmente nenhum vai ser apontado de pronto por um público não consumidor de quadrinhos, ao contrário de heróis como o Super-Homem ou o Batman. Filmes com elenco composto de maioria negra também encontramos, mas a maioria filmes de nicho, influenciados pela segregação da sociedade americana e direcionados a um público específico, de fato, o que não os impede de alcançar outros públicos.
Pantera Negra não. Pantera Negra é um “filme padrão“, para a universalidade de pessoas, porém tem sua universalidade de uma cor diferente do habitual. E é este aspecto que merece destaque: nós temos o homem branco hétero como o padrão de universalidade na cultura. É o nosso comum. É o que temos representado quase sempre nas telas e nas páginas: personagens protagonistas, atores e atrizes. E, no nosso imaginário coletivo, as representações de personagens seguem esse padrão. O que difere disso é feito de forma a tentar dar exemplo de que a sociedade é mais diversa, como é a realidade. E, se não é feito de forma excelente, vira alvo de acusação: é só para agradar as minorias! Convenhamos, as ditas minorias não são minorias numéricas e a realidade não vive de ter um elemento diferente só para dizer. Virou até piada os personagens (sempre coadjuvantes,) negros serem os primeiros a morrer nos filmes de terror/horror.
Além disso, Pantera Negra valoriza e mostra um país Africano bem sucedido aos olhos do entendimento da “civilização ocidental”. Para um mundo que consome cultura europeia e norte-americana como auge do desenvolvimento, parece até estranho ver nas telas Wakanda, com suas tecnologias e arquitetura toda baseada na estética de culturas africanas. África tão distante de nós que até mesmo tratamos todo um continente como se fosse um país, ignorando suas particularidades e diversidade. Sempre retratada como fonte de sofrimento, pobreza, miséria, conflitos. Wakanda não é isso, embora a trama não ignore os efeitos que a colonização causou no continente e faça a reflexão: por que deixamos isso acontecer?


Então: sim, Pantera Negra é um filme que, mesmo que não fosse essa a intenção, diante da carência, promove representatividade. Mas o que é mesmo essa representatividade que tanto falam? É bem simples: é a possibilidade de ver pessoas que apresentam elementos com os quais você se identifica nos espaços de poder (entenda poder de forma ampla, não apenas político). Por que isso é importante? Porque nos ajuda a nos entender enquanto pessoas plenas, capazes de almejar e sonhar visualizando nossos semelhantes. Se uma menina negra no Brasil vê sempre as mocinhas nas novelas sendo brancas, as princesas da Disney brancas e as empregadas domésticas sempre negras, o mundo que é pintado no seu imaginário é de que o seu lugar no futuro é o de ser empregada doméstica (e aqui eu não estou querendo desmerecer a profissão de forma alguma, pois toda e qualquer profissão é digna. Infelizmente, porém, no nosso país, apenas algumas são valorizadas e devidamente remuneradas). Para quem sempre teve representatividade em abundância, causa espanto as reações ao filme, mas é um momento importante para praticar a empatia e tentar entender que o mundo não é cor-de-rosa para todos e alguns enfrentam tanta dificuldade que até se ver em um filme é algo diferente. E isso já basta para fazer de Pantera Negra um filme sensacional.
Grupo indo assistir Pantera Negra (Twitter)

 
Mas raça não é biologia; raça é sociologia. Raça não é genótipo; é fenótipo. A raça importa por causa do racismo. E o racismo é absurdo porque gira em torno da aparência. Não do sangue que corre nas suas veias.” (trecho retirado de uma fala da personagem Ifemelu, do livro Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie)B.C

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