O brasileiro, essa criatura forjada no calor dos trópicos e no drama das novelas das nove, descobriu um novo tipo de sofrimento importado. E, para surpresa de ninguém, adorou. Falo do dorama, mais especificamente daquele que envolve reis de nomes complexos, eunucos sorrateiros e damas da corte com mais camadas de roupa do que uma cebola premiada. Falo da Dinastia Joseon.
À primeira vista, o caso de amor entre o Brasil e a Coreia de 500 anos atrás é um absurdo sociológico. O que um povo que resolve problemas com um churrasco e uma cerveja teria em comum com uma sociedade onde um simples esbarrão no nobre errado poderia custar a cabeça da família inteira por três gerações? O que a nossa flexibilidade quase anárquica, nosso “jeitinho”, tem a ver com a rigidez confucionista onde até o jeito de servir o chá é um tratado político?
A resposta, meu caro, é que trocamos a nossa “sofrência” de apartamento por uma “sofrência” de palácio. E com legendas.
O primeiro culpado é o escapismo. Ligar a TV e ver um príncipe herdeiro lidando com ministros corruptos é infinitamente mais relaxante do que ligar a mesma TV e ver… bem, ministros corruptos. A distância temporal e geográfica cria um verniz de fantasia. A briga pelo poder em Hanyang ((한양/漢陽) refere-se historicamente a um nome antigo da capital da Coreia do Sul, Seul) é um entretenimento shakespeariano; a nossa, aqui e agora, é só a segunda-feira mesmo. A corrupção de lá vem com figurinos impecáveis e uma trilha sonora de cortar o coração; a nossa vem com nota de rodapé no jornal.
Mas há algo mais profundo. Retire os chapéus esquisitos (gat, para os iniciados) e os hanboks coloridos, e o que sobra é a matéria-prima da qual o Brasil é feito: o drama familiar. A pressão para casar bem, a sogra que inferniza, o pai que exige que o filho siga uma carreira que não quer, a briga entre irmãos pelo controle da “empresa” (no caso, o reino). Joseon é um grande almoço de domingo em família, só que com risco de envenenamento e exílio. Reconhecemos a dinâmica.
E o romance? Ah, o romance. Em um mundo de “matchs” instantâneos e relações que começam e terminam com a velocidade de um story de Instagram, o dorama de época nos oferece o luxo do banho-maria. A tensão de um dedo que quase toca o outro. Um olhar trocado por cima de um leque que vale por um parágrafo inteiro de declaração. Eles levam 16 episódios para dar o primeiro beijo, um ato de heroísmo romântico que a nossa ansiedade tropical mal consegue conceber. É o antídoto para a liquidez das nossas relações. É a paquera elevada à categoria de arte marcial.
Há também um senso de justiça e honra que, convenhamos, anda em falta por aqui e nos seduz como um canto de sereia. O herói (ou heroína) que luta contra um sistema podre, que valoriza a lealdade e a palavra dada acima de tudo. É uma fantasia moral. Assistimos a um personagem arriscar tudo por um ideal e pensamos, com um suspiro e um pedaço de pizza na mão, “ah, se o mundo fosse assim”.
No fundo, a brasileira e o brasileiro que maratonam “Mr. Queen” ou “O Rei de Porcelana” não estão apenas assistindo a uma novela coreana. Estão se vendo num espelho distorcido e embelezado. Vêem a nossa própria paixão pelo melodrama, nossa obsessão por relações familiares complexas e nossa eterna esperança de que, no fim, a justiça prevaleça e o amor verdadeiro triunfe sobre a intriga palaciana – seja ela em um trono de séculos atrás ou na próxima reunião de condomínio.
No final das contas, a distância entre um agricultor de arroz em Joseon e um analista de sistemas em Pirituba é menor do que a gente imagina. Ambos só querem que o vilão se dê mal e que o casal principal, depois de muito sofrer, finalmente consiga ser feliz. E, claro, que a colheita – ou o bônus de fim de ano – seja boa.














Leave a Reply