Pegando descaradamente o título D&Dezembro emprestado do youtuber gingo ProJared, esta será uma série anual onde a cada dezembro tentaremos preparar textos sobre D&D e RPGs todos os dias!
O tópico do qual eu desejo discorrer hoje me veio à cabeça quando, no grupo de administradores do site da Quinta Capa (vocês não acreditam que isso tudo aqui é espontâneo, não é?), um de nossos produtores de conteúdo (que não revelarei o nome para protege-lo da fúria incontrolável da internet) revelou seu preconceito com histórias de Fantasia. “Fantasia”, leia-se aqui como a literatura dissociada do mundo real tanto em sua lógica interna quanto em seus acontecimentos históricos. Dragões, raças, castelos, esse tipo de coisa.
Eu não vou me referir a este tipo de “fantasia” como “fantasia medieval”, pois o próprio D&D apesar de se vender como medieval, tem muito mais elementos de um período histórico Clássico. O nome correto para este tipo de literatura é Sword and Sorcery ou “Espada e Feitiçaria”.
Esta, é claro, não foi a primeira e provavelmente não será a última vez que encontrarei alguém que não cria gosto pela literatura/entretenimento fantástico ou com alguém que realmente não entende o apelo de se ler sobre um lugar tão impossível e distante de nossa realidade.
Ou será que não? Para isso, desejo fazer uma pequena aulinha de literatura ‘moderna’:
O personagem Conan de Robert E. Howard, apesar de ser mais conhecido pelo filme de Arnold Shwarzenegger, data de 1932 e pode ser citado como um exemplo de literatura pulp.
Junto com seu colega-de-depressão Howard Phillips Lovecraft, Robert E. Howard escreveu no período de recuperação econômica dos estados unidos depois da quebra da bolsa de valores de 1929, que forçou o crescimento de uma literatura de baixo custo e baixa qualidade material impresso em papel de polpa. Os contos de Howard e de Lovecraft diversas vezes dividiam espaço com outras histórias de outros inúmeros escritores (tal qual Edgar Alan Poe antes deles).
Uma característica desta literatura é que, apesar de fantástica e cheia de ficção, ainda existia algum tipo de conexão com o mundo real para contextualizar a obra: Conan se passa na mesma Terra em que vivemos, só que em um período pré-histórico; John Carter é um veterano Confederado que foi misteriosamente transportado para Marte… Os exemplos são inúmeros.
E este padrão da literatura pulp se repetiria até a vinda de John Ronald Reuel Tolkien.
J.R.R. Tolkien (para caso você tenha nascido debaixo de uma pedra e lá ficado se alimentando de minhocas) é o escritor Sul-Africano que fez sua contribuição para o mundo da Fantasia com suas obras sobre as aventuras da Terra-Média através dos livros “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis” (postumamente também temos “O Silmarillion”, compilado por seu filho), que atualmente são livros conceituados não somente no mundo da literatura, como também do cinema.
Tolkien meio que chegou no mundo pra dizer… “Meh, você pode escrever sobre o que quiser”.
E a coisa importante sobre a liberação deste tipo de amarra é que, apesar de parecer dissociar completamente a literatura da realidade, apenas faz com que ela seja tratada de uma forma diferente: Mesmo com Elfos, Anões e Magos, a Fantasia é profundamente humana, pois cada um dos arquétipos de cada “raça” representa um vício ou uma virtude que existe dentro de nós.
A ganância dos anões de Khazad-Dûn que os levaram a cavar tão fundo em busca de riquezas que acabaram perdendo não somente a vida ao despertar um demônio ancestral, como também seu reino e parte de sua história. A melancolia existencial que os Elfos enfrentam ao serem obrigados a conviverem com a perpetuidade de sua própria existência, elevando seus padrões de moral, ética e beleza. A corrupção que uma bela raça pode sofrer através da violência. Tudo isso é, além de um tema recorrente dentro das histórias fantásticas de Tolkien, profundamente humano.
Acredito que essa pode ser uma forma saudável de se abordar o assunto, assim como eu disse recentemente no meu texto sobre Castlevania da Netfix, acredito que esta seja uma parte da essência do gênero que atrai tantas pessoas.
Outra coisa também é que, num mundo dissociado do nosso e com regras de funcionamento próprios, pode ser um desafio um tanto interessante tanto como leitor quanto de escritor criar algo condizente em um lugar tão alienígena. Como a existência pública da magia afeta a crença das pessoas nos Deuses? Como as pessoas lidam com o universo que as cerca? Cultos? Filosofias? Você vê, tudo é uma questão de criatividade onde se torna interessante modificar um pouco da realidade e ver como isso possivelmente afetaria o mundo. Até mesmo a existência de mais de uma Lua pode ter efeitos teológicos e meteorológicos imprevisíveis e criativos!
O próprio Conan, o bárbaro, apesar do imaginário popular de ser apenas um brutamontes com uma grande espada, revela muito sobre a crença de Robert E. Howard, que ao viver o Crash de 29 desenvolveu um profundo senso de que no fim, a selvageria sempre ganha. Conan não é um bruto porque lhe falta intelecto, muito pelo contrário! Boa parte das batalhas do bárbaro nos contos originais são vencidas por sua inteligência estratégica. Ele é um bruto porque esta é a forma mais lucrativa de se viver naquele lugar. Afinal a convivência de bárbaros é a mais civilizada possível, pois todos sabem que se ocorrer algum desaforo, alguém perde a cabeça.
Conclusão.
A despeito do extremo mal gosto de alguns, eu consigo compreender a escolha e preferência individual por histórias mais próximas da realidade, é necessário também compreender que estas histórias fantásticas e tão fora da realidade possuem seu valor histórico-cultural.
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