Você já ouviu falar de Rubens Francisco Luchetti? Segundo a Wikipédia, Lucchetti, é um ficcionista, desenhista, articulista e roteirista de filmes, histórias em quadrinhos e fotonovelas. É considerado o “Papa da pulp fiction” no Brasil, mas isso seria pouco a dizer sobre esse artista de múltiplas qualidades.
A página traz extensas informações sobre sua vida; desconfio aliás que o próprio Rubens abasteça o verbete dedicado a ele, dada a riqueza de detalhes. Mas isso é irrelevante, pois vale a pena conhecê-lo melhor. Por quê? Ora, esse paulista de Santa Rita do Passo Quatro, nascido em 1930 e reconhecido por diversos pseudôminos como Terence Gray ou Vincent Lugosi, tem extensa ficha de serviços prestados ao Terror no Brasil, tendo inclusive inaugurado o gênero em nossa literatura com a obra Noite Diabólica, publicado em 1963.
Em 2014, a editora Corvo lançou a Coleção R. F. Lucchetti, série da qual foi pinçado a obra resenhada por Francisco das Chagas Carvalho Filho, numa colaboração especial ao nosso Janeiro Literário. Poeta, contista, professor de Língua Portuguesa e Literatura. Assina seus textos literários como Carvalho Filho. É colaborador do Jornal O Piagüí. Conta com artigos publicados na revista Desenredos e poemas na revista Mallarmargens. Participou das coletâneas Tratado Oculto do Horror (coletânea de contos), em 2016, e Carnavalhame (coletânea de crônicas e poemas) em formato e-book, 2017 e Versania (coletânea poética), 2017, já na segunda edição, datada de 2018. Outros textos do autor podem ser lidos em seu blog intitulado Aquém de mim: borda literária.
O ARQUÉTIPO DO “CIENTISTA LOUCO” EM O ABMINÁVEL DR. ZOLA DE RUBENS FRANCISCO LUCCHETTI
Carvalho Filho
Dentre os mais famosos “cientistas loucos” da história da literatura está Victor Frankenstein, personagem central do romance Frankenstein (1818), de Mary Shelley; indo um pouco adiante podemos citar o Dr. Jekyll, de O Estranho caso do Doutor Jekyll e do Senhor Hyde (1886), de Robert Louis Stevenson. Ambos são homens perdidos em seus anseios por glória, imersos em suas experiências, muitas vezes bem-intencionadas, diga-se de passagem, mas que acabam em verdadeiras catástrofes, não raro, colocando em risco a própria humanidade.
Em O Abominável Dr. Zola (2015), o escritor brasileiro Rubens Francisco Lucchetti lida com esse tipo de personagem popularizada e imortalizada nos livros acima, apresentando um homem genial embebido de sua devoção à ciência, a tal ponto que põe em perigo a vida alheia em prol de seus objetivos. Antes de nos debruçarmos sobre ele é necessário que nos detenhamos um pouco em seus célebres antecessores mencionados no início deste texto, o que não deixa de revelar uma espécie de tradição, assim como pode ser percebido de maneira numerosa no que diz respeito a personagens típicas da ficção de horror, a citar, o vampiro e o fantasma.
Victor Frankenstein tem como objetivo desvendar o segredo da vida, vencer a morte, decretando uma nova era para a humanidade. E para isso não mede esforços, realizando experiências, trabalhando duro e estudando, para alcançar seus desígnios. Chega mesmo a roubar cadáveres no cemitério para poder seguir adiante com seus experimentos. De certa forma, a obra de Mary Shelley é um aviso ao homem que desafia as leis divinas e da natureza, ainda mais se levarmos em consideração seu subtítulo “ou Prometeu moderno”. Como é sabido, Prometeu foi um sábio titã que na mitologia grega entregou aos homens o segredo do fogo, e em razão desse ato foi duramente castigado pelo rei dos deuses do Olimpo, Zeus.
Por sua vez, o distinto doutor Jekill almejava separar seu lado obscuro, dominado pelo instinto e a busca pelo prazer, do lado iluminado, do brilhante médico dedicado a aliviar o sofrimento humano e melhorar a vida do semelhante. Resolvido a isolar seu lado sombrio, inventa uma porção capaz de instaurar essa necessária cisão, mas acaba por acentuar sua parte, digamos, primitiva, ligada à satisfação dos desejos, sejam quais forem, de maneira ilimitada. Chega à conclusão de que o homem é duplo, porém, não compreende que os dois lados devem coexistir. Daí o estratagema da porção salvadora.
Tanto Frankenstein quanto Jekill não são a encarnação do diabo, ou da perversidade, no entanto, se deixam levar por seus sonhos de glória. Infligir o mal aos outros não é um fim, mas consequência de suas decisões. A transgressão da moral vigente se apresenta como um passo necessário e justificável para o avanço de suas pesquisas e a concretização de seus ideais, o que envolve a quebra de limites impostos pela sociedade. Essa luta entre o indivíduo e o coletivo dá-se também em Crime e Castigo (1866), de Dostoievski, cujo protagonista, Raskólnikov, elabora uma tese para justificar o direito dos grandes líderes de realizarem seja qual for o ato para atingir seus interesses. Esses homens superiores são vistos como benfeitores da humanidade pelo jovem russo.
Victor Frankenstein e Jekill são homens dispostos a ultrapassar os limites morais. Alguns livros de fins do século XIX, que podem ser inseridos dentro do rol de obras a compor a Literatura de Horror, demonstram interesse pela ciência, mesmo que seja uma ciência própria daquele universo literário. No Drácula (1897), de Bram Stoker, por exemplo, temos dois homens da ciência, o Dr. Jonh Seward e o Dr. Van Helsing, este último dedicado não apenas à ciência convencional, como ao estudo das criaturas conhecidas como vampiros.
O Dr. Zola descende da linhagem de cientistas estabelecida por escritores como Mary Shelley e Stevenson. Esses tipos parecem ser uma alternativa ao antigo aristocrata da ficção gótica, visto desde a obra inaugural O Castelo de Otrato (1764), escrita por Horace Walpole. Mais próximo desses médicos é o protagonista de Vathek (1786), de autoria de William Beckford, um califa de nome homônimo que tinha como uma de suas características o gosto pelo conhecimento, além de demonstrar interesse pelo estudo dos astros.
A ciência produz maravilhas, é verdade, contudo, dela também podemos esperar verdadeiros pesadelos ou monstros. Não é por acaso que tem sido utilizada em narrativas macabras. Ela pode ser tanto a nossa salvação quanto a nossa destruição. A ciência possibilitou o tratamento de várias doenças, mas produziu horrores como a bomba atômica e as armas químicas. Armas de destruição em massa que colocam em risco a própria humanidade são frutos também nascidos do mundo científico, e não somente dádivas.
O Dr. Zola visa por meio de seus experimentos criar o Homem Zola, um ser superior isento, nas palavras do cientista, do lado “degenerado” existente em todo ser humano. Em certa passagem do livro, ele chega a fazer uma referência direta ao Dr. Jekill, relembrando sua constatação de que o homem é um ser dividido em dois, um lado bom e outro mal. Noutros termos, o virtuoso e o pecador. Mas antes de libertar a espécie humana de sua parte degenerada, Zola deve compreendê-la com propriedade.
Zola realiza experiências exóticas com mulheres jovens e virgens, representações da pureza para seu algoz, com o intuito de demonstrar que é possível despertar mesmo nelas aquilo que qualifica de “o próprio retrato da bestialidade”. É a voz do instinto, do frenesi sexual, que o homem da ciência pretende trazer à tona na sua forma mais primitiva, antes de extirpá-lo. Tal feito abriria as portas para a criação de sua criatura ideal, o Homem Zola. Todos haveriam de reconhecer sua genialidade.
Ao que parece, essa figura continuará a ser utilizada na literatura, e também no cinema, vale lembrar. Encerramos este texto estimulando o leitor a realizar a leitura não apenas de obras, por assim dizer, que tendem a ter maior compromisso com a realidade conhecida, mas oriundas de ramos literários como a Fantasia, Ficção Científica e a Literatura de Horror.
Referência do livro analisado
.LUCCHETTI, Rubens Francisco. O abominável Dr. Zola. Rio de Janeiro: Editorial Corvo, 2015.
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