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Janeiro Literário | Resenha: A Faca Entrou, de Theodore Dalrymple

Em seu livro mais recente, Theodore Dalrymple faz um balanço da experiência profissional a que dedicou a maior parte de sua vida. Com maturidade e bom humor, o britânico revisita num contundente os temas que ocuparam grande parte de sua carreira: da vitimização fomentada pelo assistencialismo governamental até o caráter desumano da burocracia de Estado. Obra que dialoga com o momento que atravessamos, A Faca Entrou é resenhada pelo nosso convidado Simplício Júnior, numa colaboração para o nosso Janeiro Literário.

Simplício Júnior é graduado em Direito, gosta de ler tudo que não seja manuais jurídicos e é um sujeito simples e humilde, apesar de ter nascido em Piripiri, capital do mundo.

 

Bom senso e sabedoria prática como armas civilizatórias em A Faca Entrou

Simplício Júnior

Em tempos de debates acirrados nas redes sociais, espaços nos quais as vaidades e os egos inflados encontram campo fértil para florescerem – mesmo entre as personalidades mais tímidas -, muitas pessoas, em nome do bom senso que carregam consigo, buscam meios seguros para andar no campo conflagrado e belicoso de informações (ou desinformações; as tais “Fake News”) que, de forma avassaladora, invadem suas vidas, ultrapassando as fronteiras do mundo virtual e dominando as conversas do ambiente doméstico, ou entre amigos, e, até mesmo, nos locais de trabalho.

Para sobreviver nesses ambientes minados por todos os lados, tanto no mundo virtual quanto na vida real – universos cujas fronteiras cada vez mais se mostram indefinidas -, sem dúvida alguma, a melhor arma que a civilização já criou continua sendo um bom livro.

Tempos de guerra, por mais paradoxal que possa parecer, também são momentos nos quais a lucidez e o bom senso surgem com suas forças revigoradoras da humanidade, nos redimindo da tragédia outrora reinante.

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A prova da existência dessa força está muito bem documentada no livro A Faca Entrou, lançado em abril de 2018 no Brasil pela É Realizações, de autoria do ensaísta e psiquiatra britânico Theodore Dalrymple, um dos escritores mais realistas e lúcidos de nossa época.

Temas bastante presentes em nosso cotidiano e, que, normalmente, geram enormes discussões, muitas vezes simplórias e agressivas, são abordados de forma profunda e clarividente na obra genial do britânico, que através dos relatos de sua experiência como médico psiquiatra do sistema penitenciário inglês nos coloca diante de situações que resgatam a dimensão mais dramática do comportamento humano quando este é colocado no centro do campo de batalha e se vê obrigado a enfrentar o seu mais astuto e perigoso inimigo: a sua própria consciência.

O problema da negação da responsabilidade individual, do politicamente correto, do sentimentalismo exacerbado, do excessivo assistencialismo estatal e da burocracia desumana do Estado moderno são temas tratados de forma provocadora em A Faca Entrou.

Theodore Dalrymple enfrenta todos esses batalhões de dilemas, dominantes atualmente em toda a cultura ocidental, com grande sagacidade, simplicidade e bom humor, sem perder a profundidade e a seriedade com que tais circunstâncias culturais precisam ser analisadas.

Nosso ambiente cultural, para Dalrymple, encontra-se contaminado por um sentimentalismo tóxico, responsável por boa parte de nossa degradação moral, onde o indivíduo (ou conforme a linguagem politicamente correta: “pessoa”) não assume a sua responsabilidade moral individual por seus atos, culpabilizando terceiros ou estruturas externas, que, supostamente, seriam capazes de determinar suas vontades e ações.

Esse diagnóstico fica evidenciado na linguagem dos presidiários, quando utilizam a voz passiva ao relatar os seus atos criminosos, chegando ao ponto de afirmarem que “a faca entrou”, no lugar da voz ativa “eu esfaqueei”, como se a faca tivesse autonomia e vontade próprias.

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Esse declínio moral ganha contornos mais dramáticos a partir do momento em que as estruturas da burocracia estatal passam a fomentar o assistencialismo exacerbado, sob a ótica do indivíduo enquanto ser eternamente vulnerável ou incapaz de conquistar os meios de sua sobrevivência.

VEREDITO

Em A Faca Entrou, o leitor encontrará uma crítica social bastante ácida, num tom genialmente irônico e bem humorado, que nos faz resgatar a sobriedade e a sabedoria prática diante de situações que se tornaram contaminadas pelo ambiente político-ideológico e midiático, que embriagaram e intoxicaram desde as altas esferas dos debates acadêmicos – com seus especialistas e técnicos -, até mesmos os presidiários com quem, por anos, Theodore Darlrymple manteve contato e pôde diagnosticar com extrema clareza o declínio moral de nossa cultura.

 

Parnaibano, leitor inveterado, mad fer it, bonelliano, cinéfilo amador. Contato: rafaelmachado@quintacapa.com.br