Muitas vezes, o público em geral só lembra dos grandes nomes da literatura brasileira pelas aulas no tempo de colégio ou pelas adaptações televisivas. Nesse quesito, dificilmente um autor bate Jorge Amado, que teve vários de seus romances levados tanto para a tela pequena quanto para o cinema.
Por décadas, a maior bilheteria do cinema nacional foi Dona Flor e Seus Dois Maridos, lançado em 1976 e que arrastou mais de dez milhões de espectadores às salas de todo país. Já em 2012, Gabriela foi mais uma vez adaptada para televisão, com Juliana Paes no papel título que um dia pertenceu à Sônia Braga.
Mas a memória afetiva de muitos em relação à obra de Amado nasce desses produtos midiáticos e não chega até os livros. O que, diga-se, é uma pena, pois o baiano é um romancista de mão cheia, criador de enredos e personagens sensacionais, que no papel carregam ainda mais cores e camadas. Refém talvez dos estereótipos de sensualidade e humor que seu nome associou em novelas de muito sucesso, como Tieta, Jorge Amado merece ser lido com todo o frescor que seus livros oferecem, atuais que são, e redescoberto além dos rótulos.
Para tanto, sugiro aqui três romances do imortal eleito para Academia Brasileira de Letras em 1961. Romances que, acredito eu, fogem do óbvio e revelam a arguta capacidade de observação da realidade social brasileira, explorando a natureza humana a partir do microcosmo da Bahia. A título de ilustração, coloco a capa da edição mais recente de cada um, pela Companhia das Letras. Mas eles são facilmente encontrados em diferentes versões pelos sebos afins. Porque, como diz um amigo meu, não importa se o livro é novo ou velho. O importante é que seja lido.
TERRAS DO SEM-FIM (LANÇADO ORIGINALMENTE EM 1943): As promessas de fortuna rápida são ouvidas por toda parte: aqueles que voltam de Ilhéus contam que o fruto do cacaueiro agora vale mais que ouro. Levas de aventureiros partem de Salvador e de cidades do interior para as “terras do sem-fim” no litoral baiano. Os pequenos povoados da região, como Tabocas e Ferradas, esperam ser desbravados para receber as plantações de cacau.
A ganância povoa e estimula os sonhos dos trabalhadores, mas os perigos da empreitada naquela região ainda virgem não são poucos: mata cerrada, cobras venenosas, a varíola, ou bexiga, misteriosa febre que mata, assombrações, tocaias, tiros e sangue.
Sinhô Badaró e seu temido irmão Juca Badaró são donos de uma fazenda naquelas terras. E a propriedade do coronel Horácio da Silveira fica na mesma vizinhança. A mata de Sequeiro Grande, boa para o plantio, vira objeto de disputa entre as duas famílias de poderosos. Para alcançar Sequeiro Grande, porém, é preciso atravessar o quinhão do lavrador Firmo. E ele não parece disposto a se desfazer de sua terra.
Terras do sem-fim descreve o período de formação da zona cacaueira, com a sede pelo ouro do cacau, a luta pela posse da terra, o estabelecimento das plantações e a construção das pequenas cidades nos arredores de Ilhéus, no sul da Bahia, no começo do século XX.
O universo dos coronéis, dos lavradores, dos capatazes, das senhoras de família e das prostitutas dos cabarés ganha um panorama histórico e autobiográfico de tonalidade épica. Narrativa formadora do universo ficcional de Jorge Amado, Terras do sem-fim retrata os laços sociais da região, retrabalha memórias de infância do autor e expõe a violência e a exploração que marcaram o período.
Lançado em 1943, Terras do sem-fim foi o primeiro livro publicado por Jorge Amado depois de seis anos de censura e perseguições políticas. O escritor tinha sido preso duas vezes, em 1936 e 1937, quando da publicação de Mar morto e Capitães da Areia, respectivamente. Após intensa atividade política e na imprensa durante o Estado Novo, fora obrigado a se exilar na Argentina e no Uruguai.
O romance foi escrito em 1942, no exílio em Montevidéu, e concluído em Salvador no ano seguinte. Jorge Amado retoma, em Terras do sem-fim, esboços publicados na imprensa em 1939 sob o título de Sinhô Badaró. São da mesma época seus relatos biográficos engajados: ABC de Castro Alves (1941), e A vida de Luís Carlos Prestes (1942), este publicado em espanhol em Buenos Aires e depois lançado no Brasil como O cavaleiro da esperança.
Terras do sem-fim é considerado por muitos críticos, entre eles Antonio Candido, como a mais alta realização literária de Jorge Amado. A força ficcional do romance concentra-se no retrato social profundo, inspirado nas experiências de infância e juventude do próprio autor, nascido em uma fazenda de cacau em Ferradas, distrito de Itabuna.
O livro integra, ao lado de Cacau (1933) e São Jorge dos Ilhéus (1944) o ciclo de romances de Jorge Amado que tematizam a cultura cacaueira. O desbravamento das matas do litoral baiano, as disputas em torno da posse da terra e a vida social das cidades da região marcariam de tal forma a vida do escritor que ele voltaria a esse universo, desdobrando o tema e mudando sua perspectiva, em livros como Gabriela, cravo e canela (1958) e Tocaia grande (1984), assim como nas memórias de O menino grapiúna (1981).
Terras do sem-fim foi o primeiro livro de Jorge Amado a ganhar as telas de cinema, em 1948, numa adaptação feita pela companhia cinematográfica Atlântida, com o título Terra violenta e direção do americano Eddie Bernoudy. O texto também viraria novela de TV: na Tupi, em 1966, e na Globo, em 1981.
SEARA VERMELHA (LANÇADO ORIGINALMENTE EM 1946): As terras onde Jerônimo e Jucundina trabalharam durante vinte anos no sertão nordestino mudam de mãos, e o novo proprietário dispensa os colonos. Jerônimo e a mulher decidem tentar a sorte nas lavouras de café em São Paulo. A família toda segue a trilha sertaneja: com o casal vão os dois filhos, Agostinho e Marta, três netos, Tonho, Noca e Ernesto, além de dois irmãos de Jerônimo e seus familiares.
Seara vermelha é um romance sobre a luta dos retirantes por condições de vida dignas e por um lugar em que possam descansar da luta diária pela sobrevivência. Na jornada pela caatinga, os sertanejos sofrem com a falta de comida e a aspereza da paisagem. Depois de passar fome e penar com o sol abrasador do sertão, chegam finalmente a Juazeiro, às margens do rio São Francisco, de onde seguem viagem, agora de navio.
A penúria nordestina aparece no livro como fruto não somente da seca, mas também da exploração latifundiária. Por isso, os sertanejos decidem deixar as terras de origem: seu destino final é a cidade de São Paulo, onde moram as esperanças de dias melhores.
Os que ficam na paisagem árida do sertão, como outros três filhos de Jerônimo e Jucundina, tentam a sorte como podem. João, ou Jão, torna-se soldado. José, ou Zé Trevoada, vira jagunço, e Juvêncio, o Neném, integra-se ao Partido Comunista. Seara vermelha aponta, assim, para as saídas, às vezes extremas, encontradas pelos sertanejos: a retirada e o abandono de seu lugar de origem, a religião, o cangaço e a atuação social por meio da luta revolucionária.
TENDA DOS MILAGRES (LANÇADO ORIGINALMENTE EM 1969): É 1968, e a chegada a Salvador do prêmio Nobel James Levenson provoca alvoroço na imprensa local. O professor americano vem em busca de quatro livros que documentam a formação do povo baiano, de autoria de um certo Pedro Archanjo. Voltamos então ao começo do século XX, época em que se passaram as proezas do pobre, pardo, boêmio e mulherengo Archanjo.
Na juventude, Archanjo conheceu Lídio Corró, um “riscador de milagres”, que virou parceiro na luta contra o preconceito racial e religioso. A Tenda dos Milagres, no Pelourinho, lugar onde os amigos trabalhavam, era também palco de candomblé e capoeira de Angola. E os folhetos de literatura popular e os livros de Archanjo impressos na tipografia da Tenda transformaram-na em uma espécie de universidade livre da cultura popular.
Bedel da Faculdade de Medicina da Bahia, Archanjo inspirou-se no convívio com os catedráticos da instituição e passou a estudar a história do povo baiano. Mas suas teorias, que valorizavam a miscigenação, despertam o ódio do professor Nilo Argolo, para quem os mestiços eram “degenerados”.
Em Tenda dos Milagres, Jorge Amado opõe as idéias de Archanjo às de Argolo para enaltecer a mestiçagem, a tradição popular e a cultura negra. O romance critica a postura colonizada de aceitação de teorias racistas originárias da Europa no início do século XX e ironiza a valorização tardia da obra do intelectual negro, reconhecida à revelia da elite local graças à iniciativa de um estrangeiro.
A narrativa entrelaça com extrema habilidade os registros erudito e popular. As críticas à repressão contra o candomblé e outras manifestações da cultura negra ganham relevo em dois momentos históricos: o começo do século XX, quando da atuação de Pedro Archanjo, e a época em que o livro foi publicado, em plena ditadura militar.
Publicado em outubro de 1969, Tenda dos Milagres foi escrito por Jorge Amado entre março e julho do mesmo ano. Livro predileto do autor, retoma temas que já se anunciavam em outras obras, especialmente em Jubiabá, romance protagonizado por Antônio Balduíno, líder negro de origem pobre, assim como Pedro Archanjo, personagem principal de Tenda dos Milagres.
A trajetória do intelectual negro Pedro Archanjo personifica a formação étnica e cultural brasileira e se confunde com a luta do povo baiano para preservar suas tradições populares. Archanjo defende a miscigenação, combate o racismo e valoriza o caráter mestiço de sua cultura. Essa mescla aparece também na linguagem do romance, que incorpora termos e ritmos afro-brasileiros.
Jorge Amado conta em seu livro de memórias Navegação de cabotagem que construiu o personagem Pedro Archanjo a partir de muitas personalidades, como o escritor Manuel Quirino, o obá Miguel Aré, o compositor Dorival Caymmi e Jorge Amado ele próprio. “De todos eles Archanjo incorpora um traço, uma singularidade, a preferência, o tom de voz, o gosto da comida, o trato das mulheres, a malícia”, diz o escritor.
Para a antropóloga Ilana Seltzer Goldstein, Tenda dos Milagres pode ser considerado um livro paradigmático de Jorge Amado, por concentrar alguns dos temas mais importantes da literatura do autor, como a oposição entre mestiçagem e racismo, cultura erudita e popular, atuação política e crônica de costumes.
1 Comment