Um pungente romance gráfico, “O Golpe da Barata“, da argentina Cecília “Gato” Fernández, aborda um trauma vivido durante sua infância: o abuso sexual que sofreu por parte de seu próprio pai. Aqui, conhecemos Lucía, alter ego da autora, que vive com seu irmão, sua mãe, a avó e Alberto. Seu pai é mencionado assim, de forma impessoal grande parte da trama, como a afastar qualquer laço de proximidade.
Agressivo, sorumbático, a presença de Alberto é precedida por sombras funestas, encarnando o próprio mal. Nos momentos em que se encontra a sós com a filha em casa, corrompe sua inocência de forma indelével, causando uma dor e confusão que chega a nós, leitores, com um senso de urgência perdido entre portas trancadas e o silêncio das testemunhas presentes: os brinquedos que a criança carrega sempre consigo.
O cotidiano doméstico, retratado pelas refeições em família e as idas à escola, é tomado constantemente por episódios de violência física e verbal entre seus pais, um cenário cáustico que reverbera em Lucía e seu irmão. A saída que ambos encontram, um escapismo fraterno presente nas brincadeiras de guerreiras e bruxos, ganha vida no traço da autora e nos recorda que os caminhos que a mente encontra para manter os elos de sanidade são complexos, mas por vezes a única forma de seguir em frente.
Os sinais da ruína familiar, entretanto, persistem, e se torna cada vez mais difícil ignorá-los, exigindo de sua mãe a força que parece lhe faltar nos momentos cruciais. Lucía finalmente encontrará sua paz em meio às trevas? Os traços cartunescos podem enganar o leitor sobre o tom da narrativa. Aqui temos um trabalho por meio do qual a autora buscou exorcizar seus próprios demônios.
O simbolismo da barata, apresentado logo nas primeiras páginas, encarnando uma sujeira impossível de eliminar, por mais que tentamos, confunde-se com a própria presença de Alberto e traz uma carga forte, pois Lucía (e, por conseguinte, a autora), marcada pela imundície humana na mais tenra idade, lutará para limpar-se de seu toque pelo resto da vida. Um esforço que escapa das palavras.
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