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Resenha | Boca do Diabo (Jerome Charyn & François Boucq)

Boca do Diabo tem várias camadas em seu roteiro, sendo uma viagem espiritual e psíquica tendo como pano de fundo a Guerra Fria, tornando-se uma jornada de libertação para seu atormentado personagem principal. Um quadrinho bem acima da média que só é prejudicado pelas viradas de roteiro apressadas do ato final.

 

Arte de François Boucq
Um espião soviético infiltrado em uma Nova York suja e perigosa terá em várias figura religiosas da sua vida os seus guias, como a do xamã que o acompanhará em uma jornada cheia de traições e revelações.

Quando encontramos o personagem principal de Boca do Diabo pela primeira vez, ele está “brotando” de uma chuva de corvos que lutam contra ele em busca de alimento. Vítima da 2ª Guerra Mundial que varreu a Europa, o jovem órfão com lábio leporino é resgatado por uma senhora que dará um lar a ele. Porém, por força da brutalidade da nova família e do cenário de fome que passa a Ucrânia nesse período pós-guerra, Yuri se verá criado em um orfanato, onde será ensinado a ser um agente soviético.

E é aqui que a leitura de Boca do Diabo se torna muito interessante. Os vários contextos e tramas que esse quadrinho de espionagem tem.

A trama mais visível aqui é a criação e infiltração de um espião soviético na América do Norte. Sim, mesmo após quase 3 décadas do fim da Guerra Fria, conflito entre a URSS e os EUA que se deu no campo da espionagem e política envolvendo as duas potências vencedoras da segunda grande guerra, esse período ainda causa muito fascínio.

A criação no orfanato do partido, o treinamento de Yuri, que adotará o nome de Billy Budd, os personagens secundários, como o perigoso coronel Stavroguine, e as táticas de infiltração chamarão a atenção do leitor e já rendem uma boa leitura.

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E aqui vai uma observação importante. Lançada em 1990, 1 ano após a Queda do Muro de Berlim, momento este visto como o fim da Guerra Fria, Boca do Diabo não busca apontar um lado do conflito como certo moralmente, o que é um grande acerto. Ao ponto que mostra a postura implacável e perseguidora da URSS, com táticas realmente brutais, a América onde Billy se infiltra é mostrada como suja e decadente, como bem fala o chefe indígena que trabalha na obra com Budd, que afirma que aquele país não o interessa, já que suas terras foram roubadas.

Não, Boca do Diabo não quer ser e nem é isento. Apenas é um quadrinho mais complexo do que uma simples leitura de bem contra o mal.

Arte de François Boucq
A arte de Boca do Diabo é um capítulo a parte quando falamos da qualidade do quadrinho. As páginas de François Boucq farão o leitor parar e admirá-las por alguns minutos.

E se o contexto da Guerra Fria não fosse o suficiente para tornar Boca do Diabo um quadrinho interessante, o leitor vai se deparar com outro aspecto da HQ quando os autores se embrenham pela jornada de espiritualidade e no campo psíquico de Yuri/Billy.

Desde o capítulo 1 dessa obra em 3 partes, é claro que o personagem não é uma pessoa normal. E, não, não estamos falando da sua deformidade. Desde o momento que o encontramos, em um campo de morte e devastação, passando pelo seu treinamento, que conta com a ajuda de um religioso que perdeu tudo quando da ascensão do partido comunista, a saga de Yuri é norteada por fenômenos psíquicos e religiosos. Tendo nesses vários momentos guias voluntários e involuntários, como o religioso, o xamã e, até mesmo, o coronel Stavroguine, que leva Yuri aos limites da exaustão para conseguir informações de outro espião que está em coma.

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E para aqueles que acham que a paranormalidade em Boca do Diabo é um absurdo e fantasiosa, saibam que, sim, EUA e URSS investiram nesse campo de atuação, em especial, na década de 1950 e 1960, momento em que o quadrinho se passa, visando ter vantagens militares na Guerra Fria.

Arte de Boca do Diabo.
A parapsicologia e os poderes de Yuri/Billy vão sendo mostrados aos poucos durante o quadrinho. Dessa forma, quando é o momento de realmente usá-los, o leitor já tinha percebido que o personagem era bem mais do que um simples espião.

 

Tendo todo esse contexto e as suas várias camadas de leitura, é uma pena que Boca do Diabo entregue um final com várias viradas de roteiro ligeiras, sem o devido trabalho de construção. Pra falar a verdade, alguns temas vão sendo deixados pelo caminho e trabalhados muito rápidos, como o caso do lábio leporino do personagem. Apesar de aparecer na capa com destaque e ter uma grande importância na primeira parte da obra, a condição do personagem é logo solucionada e esquecida, o que é uma pena.

Porém, apesar de tirar um pouco do brilho da obra, essas soluções e traições inesperadas não prejudicam Boca do Inferno, que é lançado pela editora Comix Zone em um belo álbum de luxo, em uma gramatura de páginas que não há leitor que possa reclamar.

Arte de Boca do Inferno.
A boa edição da Comix Zone, a arte e o tema, com certeza, chamarão atenção dos leitores brasileiros.

 

A arte sensacional de François Boucq, com uma capa que já chama atenção de muitos, com o roteiro cheio de camadas de Jerome Charyn e a edição brasileira caprichada farão Boca do Diabo entrar no radar de leitores que procuram uma boa leitura, mesmo o final da obra, e outros temas, sendo bem apressado.

Ficha técnica:

  • Capa dura, com 128 páginas;
  • Editora: Comix Zone;
  • Lançamento: junho de 2020;
  • Dimensões do produto: 6.99 x 1.37 x 23.98 cm;
  • Preço de capa: R$ 79,90.
Thiago de Carvalho Ribeiro. Apaixonado e colecionador de quadrinhos desde 1998. Do mangá, passando pelos comics, indo para o fumetti, se for histórias em quadrinhos boas, tem que serem lidas e debatidas.