Edgard Telles Ribeiro, um dos escritores favoritos dessa coluna (já falamos dele aqui) pôs na praça há pouco tempo seu mais novo romance. Uma Mulher Transparente (128 páginas, preço sugerido R$ 44,90) é o primeiro que publica pela editora Todavia, após passagem pela Companhia das Letras, Record e ed. 34, e condensa numa prosa atraente e precisa todos os predicados que o colocam entre os maiores autores da cena literária contemporânea.
Narrado por um protagonista sem nome, o enredo se passa em três tempos, com saltos pontuais na história, quase litúrgicos, levando em conta o sentido que parecem carregar. Tudo começa em 1962, dois anos antes do golpe militar, quando da redação de uma enciclopédia se ouve disparos na rua. O narrador desce para averiguar, acompanhado por Guilherme e Herculano, colegas de trabalho que avistam caída na rua uma mulher de vestido vermelho. As primeiras pessoas acodem e não há pistas do autor do crime. De volta ao trabalho, Herculano, apresentado como um intelectual de envergadura, embora discreto, entrega-se à recordação da falecida esposa, Maria do Rosário, uma pessoa evocada pelas inconveniências que irritavam o marido.
Passadas duas décadas, Guilherme e o protagonista encontram-se no velório de Herculano, e decidem sair para um almoço. Entre as reminiscências do morto e comentários sobre os anos de chumbo que pareciam chegar ao fim, ressurge a lembrança da mulher assassinada no passado, e novos detalhes vêm à tona. O narrador revela ao amigo que avistara no fatídico dia um revólver na cintura de Herculano, fato ao qual o outro se mostrou cético. Ademais, a memória de seu estranho discurso sobre Maria do Rosário após avistarem a cena do crime fez dele alguém de certa forma obsessivo por todos os detalhes que envolviam sua morte.
Ao ouvir a teoria de que Herculano seria o responsável pela morte da esposa, Guilherme mantém a posição dúbia de negar a versão ao mesmo tempo que estimulava o narrador a contá-la. E ele decide fazê-lo, sob a forma de um romance. É nesse ponto que entra em cena Gilda: casada com Guilherme, descobre a existência do manuscrito e, ao saber-se retratada de certa forma na trama, tendo sido uma das pessoas próximas à Maria do Rosário, decide se expor e contar o seu lado da história para o protagonista, trazendo à margem um pedaço oculto do passado que, ao cabo, dizia muito sobre o que vinha acontecendo no país.
Contar mais seria estragar a experiência acachapante de leitura que o livro proporciona. Um soco no estômago, sem aviso prévio, que agrega de forma contínua o trabalho pertinente que Telles Ribeiro vem desenvolvendo em seus últimos romances (O Punho E A Renda e Damas Da Noite) de revisitar a ditadura militar através de seus personagens. Ou melhor diria, dos traumas que eles carregam.
Um romance com tons minimalistas, que se estrutura em episódios encadeados pela morte, real ou simbólica, nos quais as figuras masculinas são menores diante das mulheres que despontam na trama. Uma delas, sem nome ou falas, desenterra frases entrecortadas que levam o protagonista a adivinhar o destino de outra, ausente desde o princípio, mas evocada como um fantasma a exigir retratação, provocando por sua vez uma terceira a falar, contando por fim muito mais do que poderíamos imaginar.
Uma Mulher Transparente se revela como um jogo de bonecas russas, em que cada uma se esconde dentro da outra (ou melhor diria, se encaixa?), destacando mais uma vez a maestria de Edgard em elaborar enredos que fogem de qualquer previsibilidade. Que alcance o sucesso merecido com essa empreitada e seja bem-sucedido em sua nova casa editorial.
Deixo por fim um pequeno vídeo em que o autor em pessoa apresenta seu livro:
1 Comment