Depois do nosso massacre contra Fênix Negra, o incrível Ramsés Pinheiro nos traz um texto revelador e bem legal sobre o lado bom do filme.
Estava com uma grande expectativa em relação a estreia de “X-Men: Fênix Negra” e confesso que ela foi mais que superada. Sem sombra de dúvida, trata-se do filme mais sombrio de toda a franquia o que certamente não deve ter agradado os fãs de filmes de super-heróis que foram criados no universo colorido, purpurinado e um tanto cômico da maior parte das produções da Marvel Studios.
A saga da Fênix Negra é indubitavelmente o maior épico das Hqs de X-Men de todos os tempos. Resultado da rica parceria entre o roteirista Chris Claremont e John Byrne, o arco da Fênix Negra foi um marco para a história dos X-Men, não só por ter alavancado as vendas desta revista, mas também por ter inserido personagens e elementos que se tornariam cânones no universo dos mutantes. O filme se distancia da HQ e isso é algo evidente por tratar-se de propostas diferentes em inúmeros aspectos. Compreender um processo de adaptação como cópia do material adaptado chega a ser uma crítica medíocre para dizer o mínimo.
Algum desavisado que nunca ouviu falar da Fênix pode bradar que o filme teve uma vilã muito fraca, que não deu trabalho, e um longo etc. Encaro este comentário como fruto de uma ingenuidade sem limites. Sendo bem conciso, em um filme que tenha a Fênix, uma entidade cósmica que é indestrutível e cujo poder é incomensurável, não há espaço para vilões que tenham condições de se equiparar a ela. Por isso mesmo, o foco do filme não reside no desgastado tema da luta do bem contra o mal, mas repousa numa temática muito mais complexa que pode parecer: a complexidade de Jean Grey.
Antes de qualquer coisa, o filme já tem uma imensa relevância por ter demarcado o protagonismo feminino que vem se constituindo numa revolução particular no âmbito dos filmes de super-heróis nos últimos anos a exemplo de Mulher Maravilha e Capitã Marvel. Não que o protagonismo feminino seja uma novidade em X-Men, seja nas HQs ou no cinema, onde as mulheres sempre se destacaram através de personagens como Tempestade, Vampira, Psylocke, Lince Negra, Emma Frost, Jubileu, Mística e Jean Grey.
Não é toa que em uma das cenas iniciais do filme, Raven tenha dito a Xavier que “as mulheres estão sempre salvando os homens por aqui. Talvez você devesse mudar o nome para X-Women”, uma das melhores passagens da película. Não valorizar este aspecto é no mínimo uma grande ausência de sensibilidade em relação a subalternização quando não invisibilidade imposta às mulheres nas HQs, na indústria cinematográfica e em todos os aspectos da sociedade patriarcal na qual vivemos.
Não bastasse o protagonismo feminino, o filme traz outra discussão sobremaneira importante na sociedade adoentada em que vivemos: o cuidado com a saúde mental. Sim, isso mesmo que vocês leram, saúde mental. Quando Jean Grey é incorporada pela Força Fênix, o incomensurável poder desta entidade a liberta dos entraves psíquicos que Xavier colocou na sua mente durante a infância. A partir de então, Jean começa a reviver memórias traumáticas que abalavam profundamente seu equilíbrio mental. A conversa com o pai que acreditava estar morto, as revelações do acidente de carro que matou sua mãe e o choque com a descoberta da rejeição paterna omitida por Xavier consumiram ainda mais a mente de Jean levando-a a perda do controle sobre seus atos.
Em suma, Jean sente sua mente destroçada. É evidente que saúde mental desta personagem já estava comprometida bem antes dela se tornar uma avatar da Força Fênix. A descoberta de seus poderes ainda na infância, sobretudo, a telepatia que a tornava capaz de ouvir os pensamentos de milhares de pessoas em sua cabeça certamente já eram angustiantes para uma criança de 8 anos. O acolhimento por Xavier, e o treinamento na sua Escola de Jovens Superdotados, ensinaram Jean a lidar melhor com seus poderes. Todavia, ao descobrir que a proteção que Charles lhe conferiu desde a infância também implicou na manipulação de sua mente, Jean se voltou contra o mentor passando a tratar todos como inimigos.
Esta mente profundamente atormentada precisava de ajuda que só poderia vir dos seus verdadeiros amigos, os X-Men. Nesta perspectiva, um Xavier arrependido lidera um grupo de mutantes dispostos a tudo para recuperar a verdadeira Jean. A grande mensagem do filme é o cuidado com a saúde mental, aspecto que foi ressaltado diversas vezes por Sophie Turner, a atriz que interpreta Jean Grey. Sophie revelou abertamente que já sofreu com a ansiedade e a depressão. Em manifestações públicas, Turner já disse que o primeiro passo para desestigmatizar o tema das doenças mentais é “apenas divulgar, falar sobre isso e torna-lo menos tabu para que as pessoas possam ir buscar ajuda e não se sintam envergonhadas de fazer isso. As pessoas se sentem muito envergonhadas com isso, então se, ao falar sobre, eu posso até ter um impacto em uma pessoa, isso seria incrível”.
Penso que o objetivo de Sophie foi contemplado pelo filme que retratou uma personagem cuja mente profundamente destroçada pelas revelações do passado e pela quebra de confiança em relação à Xavier se voltou contra todos. O tema da saúde mental foi o pano de fundo no qual se desenrolou todo o enredo do filme, ele estava lá em cada em cada diálogo e em cada cena. Considero importantíssima a abordagem deste tema pela indústria cinematográfica, sobretudo, por seu imenso alcance. Quanto mais falarmos de saúde mental, menos tabu cercará este tema e mais pessoas afetadas por problemas e doenças mentais buscarão ajuda e tratamento com os profissionais competentes. Justiça seja feita, “Vingadores: End Game” também abordou sutilmente o tema da depressão ao retratar um Thor completamente destroçado pelas perdas sofridas no filme anterior.
Um terceiro aspecto que nunca perde sua importância no filme dos X-Men é a discriminação racial contra os mutantes. Se no início do filme os X-Men são recebidos como heróis após o salvamento de um ônibus espacial a ponto de Xavier receber os cumprimentos do próprio presidente dos EUA, a destruição provocada por Jean Grey resulta numa brusca mudança de tratamento aos mutantes que são mais uma vez encarados como inimigos da humanidade. Sobre este ponto, no início do filme a própria Raven advertiu Xavier para que este não se deixasse levar pelo deslumbramento com as relações mantidas com alto escalão do governo norte-americano, ela não poderia estar mais certa…
Enfim, as interpretações de James McAvoy, Michael Fassbender, Jennifer Lawrence e Jessica Chastain foram impecáveis, assim como a atuação de Sophie Turner que calou a boca de muita gente, inclusive a minha, que tinha reservas quanto a uma atriz tão jovem interpretando uma personagem tão complexa como Jean Grey. São quase vinte anos da franquia X-Men sob a tutela da FOX que chegará a 13 filmes com o lançamento de “Novos Mutante” no próximo ano. Entre altos e baixos, posso dizer que o saldo é sem dúvida alguma positivo. O futuro de X-Men sob a Disney é incerto e confesso que tenho calafrios só de imaginar, mas espero estar errado quanto a isso. O que posso dizer é que Fênix Negra encerrou esta longa jornada com chave de ouro!
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