Conhecia Alberto Manguel de vista e de chapéu, mantendo sempre seu Uma História Natural da Curiosidade na minha lista de desejos. Mas calhou de outro trabalho seu, mais curto e menos comentado, cair primeiro em minhas mãos. O Amante Detalhista é um simpático volume com 90 e poucas páginas, apresentado com um bonito projeto gráfico e embalado numa encadernação em capa dura que lhe rende um toque de luxo.
E agora, finda sua leitura, preciso reconhecer que a prosa de Manguel, factualmente, nos deixa mais refinados. Para o leitor casual, a carga vocabular rica e variada pode assustar ou tornar a experiência arrastada e penosa. Com efeito, as frases floreadas na medida exata da verborragia e dilatadas por adjetivos que exalam imagens, cheiros e ruídos guiam o leitor entre a fronteira tênue da concentração com a divagação. Mas, acredite, o desafio vale muito a pena.
O autor Alberto Manguel, nascido em Buenos Aires e amigo de Borges
De todo modo, a narrativa envolvente é centrada no protagonista Anatole Vasanpeine. Indivíduo opaco, cresce num ambiente familiar anódino e chega à fase adulta sem grandes feitos, quando arranja emprego na casa de banhos de sua cidade, Poitiers. É ali que, aos poucos, Vasanpeine desenvolve e explora sua paixão peculiar pelo detalhe, pelo fragmento; o amor pelas partes. Ao expiar os clientes da casa de banhos, sua vista alcança a mecha de cabelo vermelho e chamativo, o joelho bem torneado, a púbis delicada e alva. Um voyeurismo que despreza corpos inteiros.
É nesse período que conhece o sr. Kusakabe, livreiro japonês que se recolhe na velhice à prosaica cidade francesa e lhe apresenta a fotografia. Estreitando laços, aprende com afinco o manuseio da máquina fotográfica e as técnicas de revelação, passando em seguida a praticar no trabalho. Encaixando o equipamento em pequenas frestas e orifícios, tira secretamente fotografias dos frequentadores, apreciando posteriormente os resultados com método e fulgor na solidão noturna.
Anatole enxerga beleza na inexatidão das imagens, pois a dúvida que contornos corporais lhe deixa alimenta sua falta de apreço pela compleição do todo. A nudez cifrada, enfim, como o verdadeiro encanto. Ao menos, este é o senso que o guia até o dia em que conhece por acaso uma figura humana que o hipnotiza e o confunde, com suas linhas esféricas que tornam o todo e o detalhe reproduções recíprocas de si…
A apresentação da cidade de Poitiers e arredores na abertura da novela, assim como algumas passagens ao longo da trama, remete à especulação imagética que Calvino nos traz em As Cidades Invisíveis. Carregada de notas de rodapé e referências bibliográficas a obras e autores de todo tipo, enxerga-se uma pretensão de relato histórico, de contar uma história real, o que é reforçado pelo retrato de Vasanpeine apresentado nas primeiras páginas.
Mas preferi não afetar a leitura com verificações sobre a idoneidade ou não da biografia apresentada, pois isto tanto ou mais enriquece a qualidade da prosa elegante que Manguel apresenta: as noções eletivas de Anatole Vasanpeine acabam, por fim, se espelhando no leitor.
Até então, todo ato de descoberta, todo momento de contemplação era focalizado num segmento particular e frequentemente incidental de algum todo incerto, ou num elemento a que ele emprestava importância mediante uma relação emocional com as próprias feições limitadas desse elemento, separando-o da noção tirânica da inteireza (…) Mas agora lá estava uma criatura que era tanto todo quanto um detalhe, soma das partes e entidade singular, coerente e monadário. (p. 83)
Título original: THE OVERDISCRIMINATING LOVER
Tradução: Jorio Dauster
Páginas: 96
Acabamento: Capa dura
Lançamento: 2005
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