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“A Carta de Esperança Garcia”, exibição do filme emociona

O lançamento do filme A Carta de Esperança Garcia teve manifestação à favor de melhores condições de vida para "esperanças que passam fome". E o filme corresponde às reivindicações ancestrais eternamente urgentes.

Lançamento do filme A Carta de Esperança Garcia
Lançamento do filme A Carta de Esperança Garcia teve manifestação

O lançamento do filme A Carta de Esperança Garcia teve manifestação à favor de melhores condições de vida para “esperanças que passam fome”. E o filme corresponde às reivindicações ancestrais eternamente urgentes.

Assisti recentemente ao A Carta de Esperança Garcia, de Douglas Machado e de tantas outras Esperanças. A exibição aconteceu dia 7 de março, no Teatro 4 de Setembro e teve toda uma solenidade envolvendo a participação do Governador do Estado e da Ministra da Cultura, Margareth Menezes, entre outras autoridades.

Ainda não sei mensurar direito a importância do filme, mas posso afirmar que gostaria muito de tê-lo visto 6 meses atrás, antes de começar a desenhar o quadrinho da Esperança Garcia que eu e João Luiz estamos fazendo. Acho que acrescentaria muito visualmente e talvez até em alguns pontos do roteiro.

Caso você não saiba, Esperança Garcia foi uma mulher escravizada que, em 1770, escreveu uma carta endereçado ao governador da província reclamando dos maus tratos que sofria e solicitando providências. A carta foi descoberta no Arquivo Público do Estado do Piauí no final dos anos 70 pelo antropólogo Luiz Mott e, de lá pra cá Esperança tornou-se um símbolo de luta e resistência, ganhou memorial, exposições, um rosto através de um edital público de artes visuais (no qual venceu a imagem feita por Dora Parentes), uma data comemorativa (o 6 de setembro, dia em que ela assinou a carta, que se tornou o dia estadual da consciência negra) e o reconhecimento em nível tanto estadual quanto federal de primeira advogada do Brasil, já que sua carta ganhou status de petição. Por tudo isso, mas não somente, Esperança é novamente lembrada no filme dirigido por Douglas Machado.

Tela de Dora Parentes, edital estabeleceu imagem oficial da mulher de 1770.

Mas para gente abordar o filme é interessante analisar como se deu seu evento de lançamento. Ele fez parte de uma agenda envolvendo presença da Ministra da Cultura e do presidente nacional da OAB, que entregaram um belo busto da personagem feito pelo artista plástico Braga Tepi, que fez um trabalho excepcional, diga-se de passagem.

Busto de Esperança Garcia feito por Braga Tepi e entregue à OAB-PI.

Por ser uma solenidade pública com presença de grandes autoridades o evento acumulou grande público, tanto que eu e meu parceiro João Luiz quase não conseguíamos entrar, se eu não utilizasse de meus privilegiados amigos pra conseguir uma cadeira lá dentro antes do Teatro 4 de Setembro ficar pequeno.

Por ser uma solenidade pública, também, estava à mercê de manifestações do público. E não foi diferente. No momento em que Douglas Machado subia ao palco para fazer sua abertura, começou um zum zum zum na plateia e, em pouco tempo, 6 ou mais pessoas subiram com ele e estenderam uma faixa exigindo melhores condições e políticas públicas para “esperanças que passavam fome” no Piauí.

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Houve quem reclamasse da ação, mas Douglas Machado, em atitude educada disponibilizou o microfone para que a mulher que gritava por melhorias na cara do governador Rafael Fonteles e Margareth Menezes pudesse falar melhor para toda a audiência do Teatro, enquanto Douglas permanecia quase escondido no fundo do palco. Ao final, quando foi sua vez de dizer algumas palavras, Douglas disse algo mais ou menos assim: “não preciso dizer mais nada. Não falaria melhor. O filme é sobre isso”, incorporando aquele momento que poderia ser desconcertante àquilo sobre o qual o filme tratava. Um momento de delicadeza e inteligência do diretor que prenunciava sua postura durante toda a narrativa do documentário que assistiríamos.

Mas e o filme em si? Ele é dividido em 4 partes e apresenta personagens que moram em quilombos e em Algodões, local onde viveu Esperança. Além dessas pessoas, o filme conta com a participação da ex-governadora Regina Sousa e de outras mulheres que se destacam como artistas e educadoras no Piauí, além da presença muito marcante da atriz Zezé Motta.

Trata-se de um filme muito emocionante, desde a incorporação da Zezé Motta na leitura da carta, passando pela fala do professor Solimar Oliveira Lima com Tina (uma mulher que se torna o fio condutor do filme), pelo canto de Chitara e pelo depoimento de Regina Sousa. O documentário nos leva a entender que a representação da reivindicação de Esperança ainda está muito presente e fica evidente em vários momentos da projeção, como quando a ex-governadores fala sobre foi sua infância, sobre ter visto casa de trabalhadores serem queimadas para que eles fossem expulsos das terras de ex-patrões, sobre como esses homens maldosos continuam reproduzindo a ideologia escravocrata até hoje.

João Luiz e Solimar Oliveira, conhecendo nosso quadrinho da Esperança Garcia
João Luiz (roteirista do quadrinho sobre Esperança Garcia) conheceu Solimar Oliveira na ocasião, autor que foi fundamental para a pesquisa bibliográfica que ajudou na elaboração do roteiro do nosso quadrinho da Esperança Garcia.

Certas cenas me tocaram profundamente, como quando vemos Zezé Motta caminhando por um antigo casarão, passando pela varanda, descendo alguns degraus e, há poucos passos da casa, bem em frente à entrada da construção, estava o pelourinho, o lugar onde os escravizados eram presos e torturados. Ao lado do pelourinho, um muro de pedra com outras argolas de aço onde outros escravizados devem ter sido tantas vezes presos enquanto assistiam amigos sendo espancados. Isso estava ali, à porta da casa antiga. Não estava no quintal ou em algum tipo de porão. Estavam às vistas, no cotidiano, na porta de casa. Imaginei os “patrões” sentados à sombra da varanda assistindo aquelas cenas de negros enfileirados e atormentados, enquanto, talvez, tomassem um café.

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Na cena em que Zezé tocou nas correntes, ela contorce-se de dor, faz um canto de lamento e na cena seguinte acompanhamos sua leitura da carta, carta esta que li incontáveis vezes enquanto me preparava para desenhar o quadrinho que estou fazendo, mas só quando escutei a voz de Zezé Motta “ponha os olhos sobre mim” eu realmente senti aquelas palavras e me emocionei pela primeira vez na exibição do filme. Digo isso porque não foi apenas uma vez que o filme me tocou. Também fiquei emocionado na fala do professor Solimar, assim como no canto de Shitara, ao som do berimbau.

O longa também tem seu humor involuntário nas falas e expressões da gente, retrata e atualiza os temas da carta e relembra a importância da professora Maria Sueli pela luta, responsável pela comissão que levantou o Dossiê junto à OAB-Pi que levou Esperança a ganhar o título de primeira advogada do Piauí. A luta de reconhecimento passa por Sueli e ela é todo o tempo lembrada no filme. Esperançar. Inclusive, na última sequencia do longa, temos um texto escrito por Sueli que é um verdadeiro documento: ela imagina como seria uma carta de Esperança se fosse escrita hoje, sobre o quê e para quem ela reivindicaria sobre a condição da população negra. Assim, o filme dialoga com a relação da eterna ancestralidade no presente e no porvir, e Sueli, presente, olha para a carta e a projeta para o futuro.

Falando tecnicamente, se é que isso seja realmente necessário diante da eterna urgência do filme, em alguns momentos ele causa algum desconforto pela narrativa, quando o espectador (ou eu, no caso) fiquei me perguntando “pera! Pra onde isso está indo?”. Mas, com certeza isso foi intencional com a direção de Douglas, já que as peças se encaixam todas no final.

Inclusive, importante citar, o diretor praticamente se apaga na fita, não fosse dois ou três momentos em que alguém o cita enquanto conversa com ele, uma pessoa quase invisível atrás da câmera, assim como faz os melhores diretores de documentários.

Um filme lindo e necessário.

Sou desenhista, criador do Máscara de Ferro e autor do quadrinhos Foices & Facões. Sou formado em história e gerente da livraria Quinta Capa Quadrinhos