Criado em 1972 por Michael Moorcock no conto homônimo, Elric de Melniboné transcendeu a literatura, indo para os quadrinhos. A Coluna Apêndice N é sobre este anti-herói que é um rei trágico.
Texto por John Cavalcante.
Apêndice N é o nome dado à lista de principais referências literárias para a criação de D&D, o primeiro RPG do mundo. Esta lista de livros nos traz as principais inspirações para Gary Gygax durante a criação do jogo. Este é também o nome desta coluna de resenhas destinadas a desbravar os mares literários desta estranha fantasia. Apesar do nome, as resenhas nem sempre estarão voltadas somente para o público de Role-Playing Games.
“Existiria um louco que ao pensar
Poderia os pesadelos sanar
Demônios derrotar e caos dominar,
Que deixaria seu reino, abandonaria o amor
E, jogado por marés constraditórias
Trocaria seu orgulho por dor?”
– Crônicas da Espada Negra
Um personagem importante que ultimamente tem adquirido certa popularidade entre os fãs de RPG e fantasia é Elric de Melniboné. Muito por causa dos lançamentos em quadrinhos do personagem, que são atualmente a única possibilidade de conhecimento da tragédia deste monarca.
A PUBLICAÇÃO NO BRASIL
A editora Generale chegou a lançar dois dos seis volumes de Elric. O terceiro foi anunciado para pré-venda, mas nunca chegou nas mãos do consumidor. Unido a isso, todos os livros sumiram do catálogo da editora sem aviso prévio. É uma tragédia se perder uma obra tão importante para a fantasia quanto essa, mesmo que a qualidade da edição não fosse muito boa. Eu cheguei a ler emprestado estes livros.
Antes que eu comece a falar sobre o personagem, vale um guia das publicações de Elric.
O Livro Um foi lançado pela Generale, mas também há uma adaptação européia, pela Titan. Essa adaptação é boa, mas possui algumas mudanças menores em relação ao livro.
O Livro Dois foi lançado também pela Generale, mas, também, há uma adaptação em quadrinhos chamada “Navegante dos Mares do Destino” pela editora Globo.
O terceiro livro não foi lançado, mas há a adaptação da Titan, a que saiu pela Mythos no selo Gold Edition. Alternativamente, o conto “Cidade dos Sonhos” teve uma edição pela Editora Globo, com roteiro de Roy Thomas, lendário roteirista de Conan.
Os livros quatro e cinco nunca foram lançados no Brasil. E o sexto, Stormbringer, foi lançado há muito tempo com o nome de “Espada Diabólica”, em 1975. Há também uma adaptação por P. Craig Russel para quadrinhos, lançado pela Pipoca & Nanquim.
Antes que você, caro leitor, e curioso da fantasia, pense em desistir, por favor, reconsidere. Elric é um personagem cuja sua história é contada a partir de contos não necessariamente em ordem cronológica. Stormbringer, o romance que narra não somente o fim de Elric, mas também do mundo (!) foi o primeiro a ser lançado como romance.
Os livros posteriores são compilações de contos numa ordem possivelmente cronológica. Ou seja, leia o que te apetecer e estiver disponível, mas leia! As edições Gold Edition da Mythos contam com prelúdios escritos por Alan Moore e Neil Gaiman, que contextualizam a obra de uma forma superior às edições da Generale, por exemplo.
SOBRE O PERSONAGEM E O AUTOR
Elric foi, assim como Conan, uma surpresa. Quando ouvi falar de sua pele albina, saúde frágil e espada amaldiçoada, imagens de uma fantasia Tolkeniana se formavam. Ledo engano: Os reinos jovens são muito mais estranhos e espantosos. E isso é bom! Tolkien tende a ser a visão padrão para mundos de fantasia, de forma com que, quando se fala no gênero, Senhor dos Anéis é sempre uma língua-comum. Pois bem, o autor, Michael Moorcock desaprovava profundamente do quão comum e estéril a fantasia se tornara quanto todos pareciam tentar imitar Tolkien. E isso está impresso em seu estilo de escrita tanto quanto em suas tramas.
Melniboné é um império cruel de feiticeiros que fazem pactos com dragões (aqui chamados de Phoorn por alguns motivos). É como a terra média seria se Sauron tivesse ganho. E na capital Imrryr, nasce o protagonista herdeiro deste longevo império: Um príncipe albino e de saúde frágil, cujo nascimento profetiza o fim do reinado.
Devido à sua condição de saúde, Elric não foi tão educado nas artes da tortura e da guerra, dependendo de poções alquímicas para continuar vivo, essa é uma das divergências do quadrinho da Titan, nele, o protagonista banha-se em sangue para revitalizar-se.
Graças a isso, ele possui algum senso de ética, embora ainda não seja necessariamente bom. Governar este império é um fardo não apenas pela necessidade provar-se digno do trono de rubi constantemente, mas, também, pelas perenes maquinações dos nobres psicóticos. E é aqui onde qualquer semelhança com uma fantasia padrão param, e as maravilhas de Moorcock se mostram.
A magia neste mundo é perigosa, feita através de pactos com entidades que representam princípios multiversais opostos e complementares: A Ordem e o Caos.
Elric é, assim como todos os imperadores de Melniboné, um feiticeiro competente, e já fez pacto com boa parte dos demônios do Caos disponíveis. Nesta fantasia, é mais fácil ir para outra dimensão do que andar até a próxima cidade. Lugares estranhos com pessoas estranhas abundam, e a psicodelia reina mesmo acima dessa sombria fantasia.
Adicione também nessa mistura sua espada diabólica, Stormbringer. Espada esta que é capaz de devorar almas de suas vítimas e alimentar seu usuário. Certamente está no hall de itens amaldiçoados mais bem escritos de todos os tempos. Assim como o Um Anel, ela apresenta uma oportunidade tão irresistível de perpetuar o mal, que ela nem precisaria ser senciente para me convencer da sua sedução. O resultado é, de fato, uma história de proporções épicas.
ELRIC PARA ALÉM DOS LIVROS.
O personagem é também um símbolo antifascista. Sendo escrito num cenário pós-segunda guerra mundial na Inglaterra, onde sentimentos nostálgicos colonialistas se formavam, Moorcock sublimou este sentimento de pertencimento a um império decadente ao seu personagem.
O império precisa morrer. Mas a espada em sua mão te alimenta enquanto a mesma histórica de chacina é perpetuada. O que há de se fazer, se não lamentar a inevitável tragédia? É um conflito parecido com outro personagem da fantasia, Hellboy, o herdeiro do inferno que ganha poderes fenomenais ao se aproximar de sua linhagem ínfera. Mignola é um assíduo leitor de Espada e Feitiçaria, e já produziu várias capas para Elric.
Elric inspirou diversos RPGs, como o sistema de Alinhamento de D&D, que apesar de extremamente questionado, aqui consegue gerar uma rica cosmologia. O símbolo criado para Stormbringer RPG, um jogo no cenário, para representar o alinhamento do Caos é utilizado até hoje por grupos ocultistas de Magia do Caos.
Não que a magia do Caos tenha métodos parecidos com a magia de Elric, mas ainda é um fato curioso. Os reis cruéis que domam dragões também certamente são a principal fonte de G.R.R. Martin para os Targarien. Até mesmo o visual de espadachim mago e apelido de “Lobo branco” inspiraram The Witcher, de Sapkowski. Espero resenhar estes dois algum dia para desenvolver melhor isso.
E este é apenas um dos personagens do multiverso criado por Moorcock. Este autor é um dos que tende a conectar diversas obras em um universo coeso, onde os inúmeros protagonistas são, além de tudo, fragmentos de um personagem arquetípico chamado de O Campeão Eterno. E nada disso foi publicado no Brasil ainda.
CONCLUSÃO
Esta coluna do Apêndice N é, além de uma apresentação aos temas e ao personagem, um pedido. Michael Moorcock é um autor extremamente importante para a fantasia, e mesmo assim, quase inédito no Brasil. Muito do gênero, suas obras fundadoras e pedras-angulares, permanece não publicado. Por gentileza, encham o saco, leitores, de editoras grandes, capazes de trazer estas obras.
Já para os jogadores de RPG e amantes de fantasia, Elric possui muitas coisas valiosas. Além de seus ambientes imaginativos e dimensões paralelas, suas entidades e seu conflito cósmico de Ordem e Caos pode enriquecer muito um cenário. Além disso, ele é capaz de fazer algo bastante importante: Tirar vários leitores da zona de conforto, e ver as possibilidades ainda mais infinitas que a Fantasia é capaz de proporcionar, para além de Tolkien.
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