Por Jasmine Castro*
Imaginem uma escritora de renome, alguém que viria a ser considerada um dos maiores nomes em língua portuguesa no século XX, depois de quarenta anos de estrada, desejar abandonar a literatura séria para dedicar-se a uma escritura de maior apelo popular, ainda que isto lhe trouxesse o título de louca e pornográfica, para com isso alcançar uma compensação para a desvalorização e o silêncio daqueles que pareciam ignorar seus escritos. Hilda Hilst foi muito corajosa para mostrar-se assim.
“Podem me chamar de louca” (Nova Fronteira, 144 páginas, R$ 34,90) é uma coletânea que abrange os textos que Hilda escrevia para o Correio Popular. Aqui vemos o seu lado humano, frágil, cômico, irônico e crítico, numa escrita acessível e objetiva, entre as fronteiras do pessoal e do social, do erótico e do político, para denunciar a situação aviltante daqueles que se entregam à absurda tarefa de escrever num país com milhões e milhões de analfabetos.
E nos empurra para reflexões do tipo: quem é que lê no Brasil? Por que os direitos autorais de grandes nomes da literatura valem menos do que o excremento de um sedutor de massas? — ela põe nesses termos, inclusive afirmando que a montanha de seus escritos devia valer menos que o papel higiênico de um “bom de bola” —, mas não só: faz crítica social e questiona o valor da cultura e da educação num país que beatifica acéfalos, denuncia a corrupção na política e as injustiças do mercado editorial.
O título “Podem me chamar de louca” aparece em vários textos desta coletânea, acompanhado de outros adjetivos como fantasista, utopista, pornógrafa, chula, ingênua, menor e puta, este último porque vem do verbo “putare”, que, dentre outros significados, quer dizer “pensar”. E é exatamente isso que Hilda faz quando não teme ser vista como louca: nos levar a pensar, com palavras e jeitos incomuns, por uma didática admirável pela acessibilidade, sobre o que importa: a inflação, a fome, os bilhões roubados na política, o “tesão pela bunda e pela bola” em detrimento de qualquer gesto simbólico de respeito pelos poetas e por toda a turba de artistas.
É de rir e muito mais de se indignar o que Hilda nos oferece nestas poucas e suficientes palavras. Recorto aqui algumas que me afetaram: “meu ouro de dentro não vale nada para os desatentos, minha palavra rara não é amada, minha poesia não é mais-valia, meu buraco graças a Deus continua intacto…”
Se ser louca for isso, “podem me chamar de louca” também.
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