Como um quadrinho e uma série, “Watchmen” é sobre como a história poderia ter sido reescrita se heróis com nomes extravagantes usando máscaras decidissem fazer justiça extralegal como bem entendessem. Só que a realidade do mundo que passa essas histórias é outra, a maioria dessas pessoas passam pela história humana quase esquecidas.
Apenas dois caras, o Dr. Manhattan e Ozymandias, têm o poder ou os recursos para mudar a vida de milhões e afetar mais os destinos de bilhões. No escopo do quadrinho de Alan Moore e Dave Gibbons, os dois maiores eventos transformadores estão relacionados: o Dr. Manhattan vencendo a Guerra do Vietnã pelos Estados Unidos, tornando o Vietnã o 51º estado e dando a Richard Nixon a latitude para revogar a 22ª Emenda e prolongar seu tempo no poder e Ozymandias na guerra fria matando três milhões de inocentes.
As reverberações desses eventos tiveram um papel fundamental nos últimos episódios de “Watchmen”, além da mitologia exclusiva que a série criou, que vincula a história verdadeira, mas amplamente esquecida, como massacre de Tulsa em 1921 e sua relação com o Justiça Mascado e à conspiração pelos racistas do Ciclope. O que une as linhas de roteiro de Damon Lindelof com o texto original é o forte sentimento de consequências não intencionais. Manhattan respondeu ao chamado de um país quando terminou a Guerra do Vietnã, mas o preço da vitória foi uma derrota mais abrangente e duradoura, por exemplo.
O documentário falso que abre o episódio desta semana, “Manhattan: Uma vida americana”, inclui imagens aéreas de atentados a bomba de napalm que foram usadas em inúmeros filmes da Guerra do Vietnã – somente nesta versão, um Dr. Manhattan caminha como um colosso pela selva, incendiando tudo até o horizonte. A filmagem original apareceu em 1968 no documentário antiguerra “In the Year of the Pig”, do diretor marxista Emile de Antonio, que buscava conscientizar as pessoas sobre os horrores da guerra. Mostrar essas cenas, beira a exploração e loucura humana por poder, mas é importante para a história perceber que o Dr. Manhattan não venceu a guerra apenas com a ameaça de aniquilação. Ele cometeu atrocidades práticas.
Na semana passada, tivemos um pedaço da história de origem de Angela Abar através da história de origem de seu avô, Will Reeves, que foi revelado ser o Justiça Encapuzada, o primeiro vigilante. A outra peça que faltava na semana passada, foi entregue no episódio desta, através de uma infância fortemente moldada pelo Dr. Manhattan e o sabor amargo da vitória no Vietnã. Mesmo se transformando no 51º estado, parece que uma parcela da população não recebeu os americanos como libertadores. A perda de ambos os pais para um homem-bomba conta como parte da história de Abar como uma vingadora mascarada, assim como seu interesse em um filme chamado “Sister Night”, sobre uma freira com armas de fogo.
Tão importante, porém, é entender como a jovem Abar queria experimentar e fazer a justiça. Um policial de Saigon pede que ela identifique o marionetista que colaborou com o homem-bomba, mas ela percebe rapidamente que o homem não está preso – e mais do que isso, ela quer ficar sabendo quando ele morrer. Essa não é a história de origem de uma garota que no futuro aplicará a lei. Essa é a história de origem de alguém que abusará do poder que seu crachá terá – talvez por uma causa justa, mas, mesmo assim, fora do idealismo “Confie na lei” que seu avô adotou como jovem cadete.
Até este ponto da série, “Watchmen” tem sido cautelosa ao fazer declarações políticas que falam diretamente com a nossa realidade, mas o discurso de Joe Keene Jr. sobre o Ciclope parece um catálogo familiar de queixas e disseminações brancas : “Nós não somos racistas”; “Trata-se de restaurar o equilíbrio nos momentos em que nosso país esquece os princípios sobre os quais foi fundado”; “É extremamente difícil ser um homem branco na América agora”.
É tipo de coisa que muitos políticos da direita brasileira fala todo dia nas redes sociais, mudando apenas as algumas palavras e o local. À luz de todas essas informações dolorosas, Laurie está se parecendo cada vez mais com o centro moral do programa, uma mulher cujo brutal trabalho de cinismo oculta um desejo genuíno de restaurar a ordem e o bom senso. Seu desprezo aberto por Sister Night, “Mirror Guy” e qualquer outra pessoa com uma máscara é bem fundamentado. É baseado em lições difíceis aprendidas com seu próprio passado quando foi Espectral, nas quais ela testemunhou muitas decepções profundas em primeira mão. Dr. Manhattan foi quase seu marido, afinal, e ela o viu se tornar um pária, exilando-se em Marte com as palavras: “Estou cansado da Terra, das pessoas. Estou cansado de ser pego no emaranhado de suas vidas”.
A reviravolta da série foi que Manhattan estava todo o tempo ao de Angela. Esta revelação abre inúmeras perguntas sobre os porquês e comos de tantos aspectos da vida e das atividades extracurriculares de Abar, sem mencionar a decisão do Dr. Manhattan de se envolver novamente nas cansativas vidas humanas. Talvez ele veja um culto à supremacia branca como um inimigo mais digno do que os vietcongues, um caminho para a redenção pessoal. Mas como o único super-herói real da história, seu efeito no curso provou estar além de seu controle.
O episódio teve outras coisas muito bombásticas. Mas é melhor eu deixar para você assistir.
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